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Coluna

“Todo coração é uma célula revolucionária”

16 abril 2022 - 12h56

Nos últimos dois meses escrevemos/refletimos sobre o cinema francês para a Folha dos Lagos, obras contemporâneas que contemplam a beleza, verdadeiras obras- -primas. Agora, em abril e maio, falaremos sobre obras do cinema alemão, sua força bruta, às vezes até visceral, um outro tipo de linguagem cinematográfica. Todas as minhas colunas são publicadas quinzenalmente às sextas no jornal impresso, e estão também no site da Folha. Em breve estarão na estreia do canal Lucas Müller Ocean no Youtube, que abordará Cinema & Literatura.

Em 2004, um filme alemão de baixo orçamento e câmera intimista balançava o mundo questionando nosso sistema econômico capitalista. Seu título original é “Die Fetten Jahre sind vorbei”, e em tradução livre, “Os dias de fartura estão contados”, mas ficou conhecido pelo seu título em inglês “The Edukators” (Os Educadores).

O filme do austríaco Hans Weingartner, roteiro de Katharina Held e do próprio diretor, coloca em xeque a vida de três jovens, Jan (Daniel Brühl), Jule (Julia Jentsch) e Peter (Stipe Erceg), e dilemas tão recorrentes na própria juventude: a falta de perspectiva, os subempregos que nos submetemos para pagar as contas, a imposição do modelo econômico diante dos sonhos de melhoria de vida e transformação social.

Jule participa de protestos pacíficos por uma mudança global que não vê. Jan e Peter invadem mansões por adrenalina e por uma causa: modificar os móveis de lugar com objetivo de dar insegurança na mente desses super-ricos ao se depararem com essa pequena anarquia em seus lares.

“Todo coração é uma célula revolucionária” é o lema. A partir das escolhas individuais, coletivas, subversivas de causa, e também de amor, o enredo se desenvolve. “O filme é uma tentativa de encontrar um movimento político que satisfaça os ideais dessa juventude. Também reflete o efeito da publicidade e das imagens da mídia. Não sabemos onde colocar nossa energia revolucionária e não sabemos como combater o sistema capitalista. O sistema se tornou tão invulnerável porque nos vende revolução.”, enfatizou o diretor Weingartner.

Weingartner optou pela não-violência das personagens porque, segundo ele, “a violência apenas fortalece o sistema”, citando o grupo Baader-Meinhof, que “praticamente matou o movimento de esquerda na Alemanha, porque eles deram à polícia uma desculpa para realmente se armar e criar um sistema mais totalitário”.

Os diálogos de “Edukators” são preciosos (a história dentro da própria história) e trazem questionamentos cruciais, como: a liberdade está condicionada a qualidade de vida ou na acumulação de riqueza? O tempo trabalhado é motor do sucesso profissional? A meritocracia é válida para quem nasce em condições sociais distintas ou países e regiões diferentes?

Há 2.400 anos, no livro “A República”, Platão faz uma das primeiras referências de um tipo de corrupção, a corrupção pela relação social. Nessa análise teremos um quarto personagem no filme: Hardenberg (Burghart Klaußner) — que foi um dos líderes da União Estudantil Socialista Alemã (SDS) nos anos 60, ao lado do carismático Rudi Dutschke, e o ano marcante de 68. Hoje, Hardenberg é um magnata, tendo vencimento anual de mais de 3 milhões de euros. Um verdadeiro contraste no mesmo personagem — e muito comum na vida real.

“Edukators” questiona também a distração a que somos submetidos todos os dias (tão presente na obra de Huxley): “Quantas pessoas lá fora estão pensando em revolução [mudar a sociedade]?”, questiona Jule, e Jan responde: “A essa hora? 22h é hora de assistir TV!”. Nessa época um europeu levava em média quatro horas do seu dia assistindo à televisão. Hoje, depois de 16 anos, e com o avanço da tecnologia, temos a mesma plataforma de distração, mas móvel, em um modelo menor e compacto, mais poderoso e acima de tudo: onipresente. O filme foi indicado à Palma de Ouro como melhor filme no Festival de Cinema de Cannes daquele ano.

* Lucas Müller é documentarista e graduando em Letras na UFF.