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Coluna

O ‘se tornar parte’

20 janeiro 2023 - 11h48

Quantas pessoas hoje pensam a cidade? O que seria necessário para tornar nossas vidas melhores? A reflexão num mundo sem silêncio, caótico, espetaculoso é algo cada vez mais raro. Não há nada que me incomode tanto como a miséria intelectual, o apelo ao que é vazio. Em seu clássico “A Sociedade do Espetáculo”, Guy Debord diz que “é na própria luta histórica que é preciso realizar a fusão do conhecimento e da ação, de tal modo que cada um destes termos coloque no outro a garantia de sua verdade.”

Há duas obras que vi do cinema dinamarquês que refletem bem essa consciência do ser e seu papel na história; desse conhecimento transformador (ativo) que transita da curta vida que temos, mesmo com olhos do perigo iminente da morte. Esses dois filmes são “O Amante da Rainha” (En Kongelig Affære, 2012) e “Contra o Gelo” (Against The Ice, 2022) ambos baseados em histórias reais.

O primoroso “O Amante da Rainha” se passa no século XVIII durante o reinado de Christian VII (Mikkel Boe Følsgaard), e mostra os bastidores da corte dinamarquesa, sua política de favores, vaidades, homens a venda e outros idealistas. Chega à corte a jovem inglesa Caroline Mathilde (Alicia Vikander), que agora é a rainha da Dinamarca. Caroline e Christian terão que lidar com o poder em meio a tantas crises nacionais e da própria cúpula.

O filme do diretor Nikolaj Arcel trabalha como poucos a ambientação, o figurino detalhado, as locações, a belíssima fotografia, a trilha sonora... a narrativa que se desenvolve nesse contexto; faz o espectador imergir. Devido a doença mental de Christian, o médico alemão Johann Struensee (Mads Mikkelsen) se torna médico do rei. Christian além do ideário (escondido) iluminista traz na bagagem livros proibidos ao país. Se grandes ideias sem prática não passam de palavras no papel, Caroline e Johann com ajuda de Christian tentarão mudar a história, a vida dos mais pobres, tão consumidas por gente privilegiada que não quer perder o poder, e muito menos abrir mão de alguma riqueza. As reformas serão postas à prova nesse ambiente hostil.

A atuação do trio de protagonistas, a caraterização de cada um (timidez com coragem, loucura com sensatez, ímpeto estupido e necessário), essa essência, misto de paradoxos, o desenvolvimento e a química entre eles é única, de alto nível.  

O “O Amante da Rainha” foi indicado ao Oscar como melhor filme estrangeiro e ao Globo de Ouro, e venceu dois Ursos de Prata no Festival de Berlim, de melhor ator para Mikkel Boe Følsgaard e melhor roteiro para Nikolaj Arcel e Rasmus Heisterberg.

No início do século XX o mundo tinha muitos de seus territórios inexplorados, principalmente os mais inóspitos, como a maior ilha do mundo, a gélida Groelândia, e seus mais de 2 milhões de km². O filme “Contra o Gelo” inspirado no livro “Dois contra o Gelo” do explorador Ejnar Mikkelsen, conta sobre a expedição dinamarquesa do navio Alabama no ano de 1909 e a disputa entre Dinamarca e Estados Unidos por esse território que beira os -40°C.

O filme de Peter Flinth tem planos abertos que dão dimensão do isolamento e magnitude desse gelo no hemisfério norte. Ejnar Mikkelsen (Nikolaj Waldau) e o mecânico Iver Iversen (Joe Cole) terão que encontrar provas, sejam por eles mesmos, ou de explorações anteriores como a “Expedição Dinamarca”, de 1907, que a Groelândia tem apenas um território, sem divisão a noroeste.

O filme “Contra o Gelo” é bem bonito, pois não se trata apenas de um filme homem versus natureza, não é apenas sobre a jornada de Ejnar e Iver, mas o que revela em outras camadas: a fragilidade humana meio a sobrevivência extrema, a cumplicidade, o desgaste físico e mental, e a persistência nessa luta; ele faz refletir de quantos passos deram para chegarmos até aqui. Dois anos antes dessa exploração, outro explorador, Jørgen Brønlund escreveria em seu diário: “Eu morri no Paralelo 79N, sob as adversidades da viagem de retorno sobre o gelo do interior em novembro. Venho sob a lua minguante e não posso continuar por causa dos meus pés congelados e da escuridão. Os corpos dos outros estão no meio do fiorde. Hagen morreu em 15 de novembro, Mylius Erichsen cerca de dez dias depois.”

Sem essa coragem – muitas vezes fatal – não haveria as grandes navegações, não existiria o mundo como é hoje, o avanço da tecnologia, a ciência. Na vida, nada em si tem início ou fim. Tudo é sempre uma parte.