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Coluna

A mentira como narrativa

06 fevereiro 2023 - 10h58

Todos nós mentimos, em maior ou menor grau. Sem a mentira, a vida em sociedade séria impraticável. Nenhuma relação social existiria sem a mentira. Não existiria relação familiar nem amorosa. Mesmo tão comum, banal e capital, a mentira ainda é tida como um tabu quando pronunciada. Algo de confessionário, moral-religioso, a ser exorcizada.

Assim como a vida real, em toda ficção, em toda história há mentira. Picasso dizia que “a arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade”. No cinema, de todos os filmes que vi, poucos a usam como elemento central da narrativa, que desencadeia uma série de acontecimentos para o bem ou para o mal (na maior parte das vezes). Filmes como “Forest Gump” (1994) e “Peixe-Grande” (Big Fish, 2003) trazem em sua narrativa, em suas histórias, mentiras que gostamos de ouvir e ver. O belíssimo filme franco-alemão “Frantz” (2016) vira a chave da mentira e a coloca como necessária para se poder viver, seguir adiante. Já outra obra-prima, a inglesa “Desejo e Reparação” (Atonement, 2007), terá a mentira como consequência destrutiva.

O filme dinamarquês “A Caça” (Jagten, 2012), talvez nessa lógica de destruição e pós-verdade, seja o que melhor trabalha a mentira como elemento social, de injustiça, essa arquitetura coletiva de julgamento e punição à frente da justiça, essa inversão comum na sociedade. Lucas (Mads Mikkelsen) é professor do jardim de infância de uma pequena cidade dinamarquesa. É divorciado e tem sua cachorra Fanny como companhia diária e seu filho Markus (Lasse Fogelstrøm), que o visita a cada duas semanas e agora deseja morar com ele. Lucas, apesar do divórcio, está bem, entre seus amigos e uma nova namorada que está conhecendo. É amado no meio onde vive. Nessa pequena cidade a caça esportiva de cervo é cultural entre seus habitantes, principalmente homens adultos e jovens que irão ingressar nessa nova fase. A caça é um rito de passagem.

O filme do diretor Thomas Vinterberg é tão interessante que trabalhará com essa simbologia da caça e caçadores. Klara (Annika Wedderkopp), aluna na creche de Lucas e filha de um de seus melhores amigos, Theo (Thomas Bo Larsen), lançara uma mentira (que todo tempo é nítida no filme) que foi assediada sexualmente por ele, Lucas. A diretora da creche, Grethe (Susse Wold), acreditará em Klara, de 5 anos, e agora está disposta a contar a todos os pais e à comunidade o suposto crime de pedofilia. Em seu imaginário (como grande parte do imaginário popular), crianças não mentem e são o mais próximo que há de Deus, por sua pureza e honestidade.

Essa subjetividade será a sentença. Lucas agora é o alvo, a caça, e seus amigos e comunidade, os caçadores, que, independente da verdade, querem sentenciar, matar Lucas. O apelo emocional desses cidadãos será acima de qualquer fato, acima de qualquer escuta ou prova. O boato se espalha como uma epidemia nessa antes pacata cidade.

“A Caça” foi indicado ao Oscar e Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro; no Festival de Cannes concorreu a melhor filme, e Mads Mikkelsen venceu o prêmio de melhor ator. Venceu ainda sete prêmios no Robert Awards, maior prêmio do cinema dinamarquês, incluindo os de melhor filme, melhor diretor e melhor ator para Mads.