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Coluna

Redescobrindo o tempo em Proust

26 março 2022 - 23h11

Talvez, uma máxima é que nunca saberemos o tempo certo das coisas, cada medida, cada estágio da nossa vida, se perdemos ou ganhamos tempo, se isso realmente existe. A imaturidade neste cálculo talvez seja uma dádiva ou um martírio. Nunca saberemos. Lendo recentemente Roland Barthes, e seu livro “A Preparação do Romance”, encontrei trechos que me deram lembrança de um autor que ainda não li como deveria: Marcel Proust.

Talvez tenha uns vinte anos, onde a biblioteca mais próxima da minha casa era um refúgio quase diário. Vivemos em cidades barulhentas, nossas casas são barulhentas, nossas famílias, ruas; ruídos de todo tipo. É difícil contemplar o silêncio, e o que ele pode proporcionar na leitura e na vida. A biblioteca era na faculdade Ferlagos que era aberta a comunidade local, e o leitor pagava uma taxa de R$ 10 por ano. Naquele silêncio, sagrado silêncio, eu me encontrava. Ali foi o ponto alto da minha descoberta na verdadeira literatura, de autores que dedicaram sua vida à sua obra, muitos morreram de formas trágicas, com fins que certamente não mereceram. Na literatura francesa, fiquei extasiado com a qualidade e poesia da escrita de “As Flores do Mal” de Baudelaire; foi a primeira vez na vida, em que a leitura me suspendia no ar, me levitava. Depois, “O Tempo Redescoberto”, o primeiro volume “No Caminho de Swann” de Proust, e bebia dessa fonte, em algum momento não me recordo porque não prossegui a leitura. Depois Sade com seu “Crimes do Amor”, Rimbaud com sua “Estádia no Inferno”, entre outros.

Do fim do ano passado para este passei lendo os dois volumes de “A Preparação do Romance”, e esse livro – graças a Barthes - me fez olhar novamente para Proust: “Para Proust, escrever serve para salvar, para vencer a morte: não a sua, mas a daqueles que ele ama, testemunhando por eles, perpetuando-os, erigindo-os fora da não memória.”, uma dentre tantas passagens marcantes desse livro de crítica. Comprei o “Livro do Por Vir” de Maurice Blanchot, que estou lendo nas horas vagas (provavelmente morreremos antes dos livros que desejamos ler), e finalmente vi o filme “O Tempo Redescoberto” (Le Temps Retrouvé, 1999), do diretor chileno Raúl Ruiz, talvez o maior diretor de seu país. Ruiz foi exilado na França durante o golpe militar de Pinochet.

O filme começa no ano de 1922 - 100 anos atrás exatamente – e Proust em seu leito ditando/revisando/escrevendo seu último volume de “O Tempo Redescoberto”, e em determinado momento, com uma lupa olha fotografias de sua vida, parentes, amigos, pessoas reais que se transformaram por sua imaginação em personagens literários. Proust os eterniza. Faz de suas memórias a essência de sua obra.

“O Tempo Redescoberto” – como Redescobrindo o tempo em Proust a obra do romancista francês – é contemplativo, tem uma direção de arte impecável, mostra o luxo, frivolidade, vazio da vida cotidiana da aristocracia parisiense (talvez o mesmo em qualquer aristocracia ou alta burguesia). Ruiz mescla o onírico e passagens da vida de Proust durante diferentes idades e sua busca na literatura até se tornar o grande escritor que foi e é. Tem diálogos de vida bem profundos, principalmente entre o emocionante ator italiano Marcello Mazzarella (Proust adulto) e a atriz francesa de olhos magnetizantes Emmanuelle Béart: “Acho que as mulheres que não amamos mais, e que revemos depois de anos entre elas e nós há um abismo. É como se não fossem deste mundo, pois nosso amor não existe mais”, diz Marcello, e depois em outro trecho, Emmanuelle: “Quem se deleita na tristeza cava seu túmulo.”

“O Tempo Redescoberto” começa em um compasso uníssono mais vai crescendo e tem uma belíssima sequência final. A trilha de Jorge Arriagada, e especialmente sua sonata é de uma sensualidade e embriaguez únicas. “O virtuosismo jamais superará o belo.”, diz o pianista Charlie Morel, interpretado pelo ator suiço Vincnet Perez. O filme de Ruiz entre a memória, a literatura e a música busca o que buscava Proust: a beleza da vida, independente do meio. E preciso ler “O Tempo Redescoberto”, para muitos o romance maior de todos os tempos.

* Lucas Müller é cineasta e produtor cultural.