Estou tentando escrever uma crônica leve e esperançosa; ou quem sabe, poética e simbólica; tento ainda um texto consciente e engajado. Mas estou cansada, tão cansada! Tudo me escapa, mesmo que palavras me consumam. Todos os caminhos de escrita pelos quais costumo percorrer ou descobrir, apertam-se, estreitam-se, desaparecem... Sinto-me sem saída, sem ao menos lugar. Perdoe-me, leitor, gostaria de lhe oferecer palavras que cumpram seu propósito de entretenimento, de sublimação, de retrospecto, de deleite... Fracasso. Uma dor invariável furtam-nas da minha inspiração. Uma dor cansada, porém latente; lenta e estendida. A dor por um luto coletivo que não acaba. A dor por vivenciar o que evidencialmente poderia ter sido evitado. De certo você já chorou sem querer ou “poder” em algum momento. Mas já experimentou querer chorar e não conseguir dada a exaustão e ao choque?
São mais de 400.000 mortos.
Apesar do número soberbo, todos têm um nome, uma história. Todos tinham sonhos, projetos, esperanças. Todos são o amor, o amigo, o conhecido, o ídolo, a admiração, a inspiração, o alguém de alguém. Escrevo esta crônica abalada pela morte constatada há poucas horas do humorista Paulo Gustavo, uma espécie de parente de todos e todas brasileiras, dado o seu talento, carisma e sucesso, mas também sua reconhecida bondade, genuinidade e alegria que nos arrebatam já há algum tempo. Paulo representa essa dor pelo que não deveria, pelo que de outro jeito poderia ser. A perda do artista não me dói por si só, dói além, pelo que ela representa, dói pelo que ela não sustenta – desculpas, acasos, infortúnios, vontade divina –. dói porque há outros tantos partindo pelo mesmo motivo, não tão famosos ou icônicos, contudo singulares no sentimento de alguém.
Choro pelo querido humorista. Mas não choro só por ele. E não choro só. Lágrimas diversas espalham-se fatigadas e levam outros nomes. Ainda que eu não conheça a maioria dos que se foram, cada morte dói, imensa e intensamente. Não seria esse o conceito de amar ao próximo? E já que chegamos até aqui, será que podemos mesmo atribuir toda essa tragédia à vontade de Deus? Eu não creio. Não nessa vontade, mas absolutamente em Deus. Creio sim no seu controle sobre tudo e, consequentemente, na sua permissão, permissão pelo que escolhemos antes: não cuidamos do planeta, não cuidamos do nosso estar no mundo, não nos sustentamos e permitimos a proliferação de doenças, vírus, bactérias.
Permissão pelo que escolhemos depois, não evitando as contaminações, e, sobretudo, pelo que escolheram após - pela primeira vez, aliviadamente não me incluo, mas desastrosamente sou atingida – a construção engendrada de um golpe, em 2016, culminando na “aparição” de um tenebroso e malfadado mito, em 2018, resultando num genocida, desde 2020.
Nada foi ocasional. A partir de escolhas históricas mais antigas ou recentes, estamos colhendo o grande mal. Outros países também sofreram a pandemia, mas estão fechando este ciclo. Nós mal começamos a combatê-lo e, todo dia, nosso maior “representante” nos puxa para trás nesse processo, ou nos empurra, literalmente, pra cova. Quando nos foi dada a chance, muito antes do caos atual, ela foi recusada, banalizada. Estão aí os fatos, os documentos, os depoimentos que provam tal conduta criminosa. Não por acaso neste mesmo dia em que escrevo e o humorista morre do vírus, inicia-se a CPI da Covid.
O presidente do nosso país escolheu nos matar! Escolheu matar Paulo Gustavo e tantos outros nomes de nossos afetos. E como se não bastasse, ele continua escolhendo. A cada nova expressão de pouco caso, de ironia, de deboche com relação ao extremo número de mortos pela pandemia. E ainda temos a fome! Ah, a fome...Ela voltou! Nada, oficialmente, é feito. Há brasileiros salvando brasileiros, campanhas, projetos, ONGs, enquanto nosso presidente, bonachão e bem alimentado, nos mata.
Creio sim na interferência, providência e grandiosidade do amor divino e não ouso, dada a minha crença pessoal, duvidar deste amor, ainda que estejamos vivenciando uma tragédia dolorosa e sem precedentes. Porém, não, não creio ser essa a vontade de Deus. Não do Deus amoroso que conheço, tantas vezes ameaçado de me ser arrancado pela religiosidade, mas resgatado tantas outras nos dias da minha vida pela subjetividade livre, incoerente e sólida da construção da minha fé.
Fomos nós que escolhemos, é nosso o perigoso e figurado livre-arbítrio. Há o acaso, há a vontade divina e há as escolhas. Aqui, falo desta última, sem nunca desconsiderar as anteriores. Há muito tempo que deixei de pragmatizar a simbologia de Deus e escolhi experimentá-lo nos detalhes, nos paradoxos, em mim e no outro. Acreditar que o que estamos vivendo é sua vontade original seria desacreditar de mim, de você, do nós. Seria desistir Dele.