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Coluna

Multa S/A

01 outubro 2022 - 12h36

Em 28 de janeiro de 1896, um cidadão inglês de nome Walter Arnold Kent foi multado na via Paddock Green, em Kent, por estar dirigindo a uma velocidade de 12 Km/h onde a máxima permitida era de 3 Km/h. Fato curioso é que ele foi perseguido por um policial montado em uma bicicleta. Segundo o “Guinness Book”, essa foi a primeira multa de trânsito registrada na história. Mas a prática da cobrança de multa, ou “coima”, vem de longo tempo.

Na Roma antiga era comum os contribuintes de impostos e taxas, em atraso, entregarem a “mulcta”, leite ordenhado, como compensação pelo não pagamento em dia de uma obrigação pecuniária. Também foi instituído o recurso da multa para o conjunto das práticas que substituíram os castigos físicos, muito comuns na época. Aliás, vigente na atualidade, previsto no Código Penal, quando há a admissão da substituição de penas de reclusão por pagamento de multa em dinheiro, em várias situações, dependendo da dosimetria da pena.

A Bíblia, no antigo testamento, registra diversas situações em que a lei determinava pagamento de multas em decorrência de infrações: “Se o boi escornar (ferir com os chifres) um servo, ou uma serva, dar-se-ão trinta siclos de prata ao seu senhor, e o boi será apedrejado” (Êxodo 21:32); “Se alguém furtar boi ou ovelha e o degolar ou vender, por um boi pagará cinco bois; e pela ovelha, quatro ovelhas” (Êxodo 22:1), e em tantas outras situações.

Na atualidade, quem já não teve que pagar uma multa. Por atraso na taxa de condomínio; no carnê de uma prestação; na guia do IPTU e em outras ocorrências, principalmente por infrações do código de trânsito? A cobrança de multa se transformou em uma verdadeira indústria, gerando recursos extraordinários, sem que para isso haja necessidade de despender qualquer custo de produção, constituindo-se em ótimo “negócio”.

No sentido jurídico definimos multa como uma pena pecuniária imposta a quem infringe leis ou regulamentos. Entretanto, vemos que sua aplicação, na maioria das vezes, é exorbitada, ferindo princípios elementares da teoria econômica quanto às fontes legais de geração de receita. Na introdução ao estudo da economia aprendemos que existem quatro formas de se obter rendas: salários, juros, lucros e aluguéis. Na área pública as receitas são obtidas através de impostos, taxas e contribuições de diversas naturezas.

E as multas? Estas são classificadas como “receitas extraordinárias”. Temos que reconhecer que há um excesso na utilização dessa prática, principalmente na cobrança feita pelo poder público. Claro que não devemos fazer apologia à inadimplência, mas na ocorrência de um atraso no pagamento de um tributo já há a previsão de ressarcimento ao erário. Cobram-se juros e correção, ou seja, o capital foi atualizado (correção) e compensado pelo seu uso (juros). Por que então cobrar multa?

Na minha passagem pela administração pública, sempre assumi posição contrária à cobrança da multa sobre atrasos de pagamento de tributos, reconhecendo que quase na totalidade os contribuintes deixaram de pagar seus tributos por falta de recursos. Mas a legislação não permite que se deixe de fazer, sob pena do gestor incorrer em ato de improbidade. O absurdo é ainda maior, uma vez que, em muitas situações, é aplicada multa progressiva, mesmo havendo acumulação dos juros e da correção monetária.

Recentemente vi uma reportagem na televisão sobre os abusos cometidos por agentes de trânsito na aplicação de multas. Pessoas denunciando terem sido multadas em local onde nunca estiveram; outras recebendo multa por pilotar moto sem capacete, sem sequer ter moto, e tantos outros absurdos. Certa vez assisti a dois agentes de trânsito conversando sobre ter que preencher seu talonário de multas para cumprir meta e para isso iam escolhendo aleatoriamente placas de carros que passavam e os enquadravam, sem que houvesse infração. Certas estradas brasileiras são verdadeira armadilha para motoristas. Placas de sinalização de velocidade que mudam bruscamente, não dando a oportunidade de redução, resultando em penalidade; falta de sinalização adequada, entre outras, são algumas das armadilhas preparadas para gerar mais receita extraordinária em favor do erário.

Algumas correntes defendem o uso pedagógico da multa, baseada no princípio de que a “parte mais sensível do corpo humano é o bolso”. Em se tratando de transgressões da lei, atos danosos ou crimes, até há justiça na aplicação dessa sanção. Entretanto, cobrança sobre uma receita a ser auferida, para a qual há correção monetária e juros que atualizam a dívida, temos que reconhecer que é injusto.

O que podemos dizer diante desses fatos? Que a Justiça não passa de um monte de princípios feitos por aqueles que detêm o poder para se aproveitarem dela? Voltaire (1694 – 1778), filósofo iluminista francês, escreveu: “É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente”. 

(*) Clésio Guimarães é empresário, professor, administrador de empresas e representante do CRA-Conselho Regional de Administração.