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Coluna

Filosofando a palavra

03 março 2021 - 16h42

Na Antiguidade Clássica, Aristóteles já afirmava que o ser humano é um ser de linguagem e mostrava os vínculos desta com o pensamento, com a racionalidade. Platão, por sua vez, afirmava que a palavra é um pharmakon (fármaco, medicamento em grego), que pode agir como um remédio ou como um veneno, dependendo da forma como é usada. A palavra, portanto, não é boa em si mesma, mas tem um valor definitivamente positivo no sentido de expressar e comunicar o nosso interesse. O bom uso da palavra, para ele, é o exercício do pensamento, aproximando-nos das verdadeiras ideias. Chamamos de dialética o processo pelo qual a alma consegue se aproximar das ideias por meio do diálogo, usando a linguagem. Todavia, há quem a use para enganar, e não para buscar a verdade.  O que é diferente de criar, inventar que são necessidades da arte e, logo, da alma humana, representadas pela Literatura e pela música, por exemplo. A palavra artística nos inspira, comove, nos melhora. A palavra enganadora nos maltrata, aprisiona, nos piora.

A teoria de Platão sobre a realidade das ideias e dos sentidos, sempre me encantou. Segundo ela, a realidade é composta por dois mundos: O mundo das ideias, mundo ideal ou mundo inteligível, que pode ser alcançado pela inteligência humana e o mundo dos sentidos, mundo sensível, que pode ser conhecido pelos sentidos, a realidade imperfeita. No mundo sensível, as coisas mudam, pois tudo aquilo que é imperfeito, busca a perfeição.  A verdade do que aprendemos, descobrimos e conhecemos associada à realidade do que sentimos, fruímos ou mesmo interpretamos com relação a essas ideias.  Na minha concepção, esta duplicidade nos remete novamente à Literatura, nela é possível a obtenção da realidade associada aos sentidos, é o mundo das ideias e dos sentidos possíveis  gerando cumplicidade, ainda que tantas vezes ambígua, conflituosa e mística, mas é dessa complexidade que somos formados, é ela quem nos faz crescer e gerar reflexões, questionamentos, descobertas, sensibilizações e arte. 

 No século XX, o filósofo Ludwig Wittgenstein criou um movimento que colocou a linguagem no centro da reflexão filosófica, deixando de figurar apenas como um meio para nomear as coisas ou transmitir pensamentos. Em tal movimento, denominado virada linguística da filosofia, Wittgenstein sugere a linguagem como tema principal de reflexão, mas tal feito só seria possível se existisse uma correspondência entre o mundo, o pensamento e a linguagem. Dito de outra maneira, se houvesse uma correspondência entre a figuração do mundo na linguagem e o próprio mundo afigurado.  O filósofo está preocupado com a essência da linguagem, com seu mecanismo de significado das coisas e do mundo, para ele, ambos estão, portanto, intrinsicamente ligados. “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.”
Ouso associar Platão à Wittgenstein e ao próprio Aristóteles: nós, seres essencialmente linguísticos, usamos os códigos comunicativos, sobretudo a fala e a escrita, para mostrar  nosso conhecimento, esclarecer dúvidas, gerar relações e buscar o sócio; experimentamos e expressamos, por conseguinte, o nosso mundo tantas vezes pela palavra. No jogo dos vocábulos, contudo, insere-se nossa emoção, ainda que recôndita: o que somos e sentimos estão também na nossa composição de linguagem. O que me faz também lembrar da tão em voga Análise do Discurso, que com contribuições da Linguística do Ferdinand Saussure, do Marxismo e da Psicanálise a partir de Freud, sugere não mais embasar os estudos linguísticos no nível da frase, ou sentença isolada; agora; os estudos linguísticos estão no nível do discurso ou do texto. Ou seja, todo discurso está imbuído de ideologias, sentimentos e propósitos além. Mas, permita-me, caro leitor, escavar tal temática em outro texto, pois é merecedora de linhas e mais linhas de prosa.

As mensagens buscam a perfeição, e, mesmo só alcançando-a, eventual ou raramente, quando tentamos visualizar ainda que simbolicamente a alma, creio que uma forma de vê-la é um universo denso e repleto de palavras: as ditas, as caladas nos lábios, mas vivas na inconsciência, as presas querendo se soltar, as em construção de sentido, as guardadas e querendo assim continuar... Costumo lidar com elas como Drummond sugeriu: “Chega mais perto e contempla as palavras, cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra”. Se eu trouxe as chaves? Tenho um chaveiro aqui comigo! Nem sempre funciona, mas as tentativas tantas vezes me abrem portas... Você, de certo, também tem o seu. Repito o poeta, com certeza da sua licença poética: Palavras, palavras, se te desafias, aceite o combate!