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Coluna

Escrever a vida com os olhos

25 fevereiro 2022 - 07h47

Todo homem reflete sobre como seria sua morte. Este enigma que nos é dado; o tempo que temos. E se hoje por uma fatalidade, sua saúde ruísse, quem realmente estaria ao seu lado?

Tem filmes que se fazem a cada cinquenta, cem anos talvez; o francês “O Escafandro e A Borboleta” (Le Scaphandre et le Papillon) é um desses raríssimos filmes. Revi pela terceira vez neste fevereiro, depois de 10 anos. Esse filme é um divisor de águas na minha vida.

“O Escafandro e A Borboleta” é sobre a história real de Jean-Dominique Bauby, jornalista e editor da famosa revista francesa de moda Elle, nos anos 90. Jean-Dominique desperta de um coma profundo após 20 dias, e descobre que está com a Síndrome do Encarceramento (LIS). Terá apenas um olho, o esquerdo, para se comunicar com o mundo externo.

Apesar de um contexto dramático-trágico, o filme de Julian Schnabel é sútil, sensível, refinado, sabe tratar o contexto sem melodramas ou sentimentalismo. “Hoje sinto que toda minha existência foi uma cadeia de pequenos erros. Mulheres que não fui capaz de amar, chances que não pude aproveitar, momentos de felicidade que deixei escapar. Uma corrida cujo resultado era conhecido de antemão, mas na qual você não fracassava em apostar no vencedor. Estava cego ou surdo? Ou precisava de uma desgraça para ver sua verdadeira natureza?”, narra seu protagonista, interpretado pelo excepcional ator Mathieu Amalric. Além das metáforas e reflexões existenciais, o humor sarcástico de Jean-Dominique vai dar um outro ponto de vista ao filme. Não é um filme de superação, é um filme de aceitação e aprendizado.

Pela fotografia do filme (câmera subjetiva em grande parte) olhamos o mundo com olhar de Jean-Dominique – e o equipamento, a matéria “desaparece” e entramos dentro do escafandro, e vemos sua imaginação e seu mover de asas. “Decidi não sentir mais pena de mim mesmo. Dei conta de que há duas coisas que não estão paralisadas além dos meus olhos. Minha imaginação e minha memória.”, diz Jean-Dominique.

O filme usa uma metalinguagem, a memória sendo narrada dentro da própria memória. Para conseguir se comunicar e passar essas memórias ao mundo externo, fora do escafandro, a fonoaudióloga Henriette, interpretada pela talentosa Marie-Josée Croze, ensinará a Jean-Dominique um método em que a cada piscar de olho será correspondente a uma letra do alfabeto. De uma simples afirmativa (uma piscada) e negativa (duas piscadas), Jean deseja sair do casulo, se comunicar com quem ama, piscar frases, pousar suas palavras e afeto em quem necessita... escrever a vida.

No sentido afetivo “O Escafandro e A Borboleta” foi o primeiro filme fora do circuito convencional/comercial que tive acesso. A descoberta de outro tipo de cinema, mais humano, mais belo, de essência. “O cinema de verdade”, como diria o querido cineasta Gerson Tavares. Talvez o ano que assisti ao filme pela primeira vez tem sido 2009. Havia essa seção de locação de DVDs dentro da livraria Ler & Ver. Lembro muito deste filme e do excelente japonês “A Partida” (Okuribito), entre o garimpo cego, quase toda sexta-feira, feito de muito mais erros na escolha, que acertos. Nesta época ainda tínhamos livrarias, sebos, e o saudoso Cine Recreio no Centro de Cabo Frio. Revi “O Escafandro e A Borboleta” em 2012, numa despedida para morar em outra cidade, outro estado, num recomeço, dentre tantos.    

Algo bem singular nesse filme é o próprio diretor, Julian, que também teve vários recomeços. Julian Schnabel é estadunidense e formado em artes pela Universidade de Houston; é pintor desde os anos 80. Migrou dos Estados Unidos para Europa, trabalhou como taxista, e dirigiu seu primeiro filme apenas aos 45 anos. Hoje aos 70 anos tem apenas seis filmes dirigidos, ele não se importa com números, mas com a obra.

“O Escafandro e A Borboleta” além de Julian, elenco, e do diretor de fotografia Janusz Kamiński com sensibilidades fora do comum, tem a montagem primorosa por Juliette Welfling, e a trilha de Paul Cantelon, que através do piano faz o filme fluir/evoluir/refluir no tempo cronológico e no tempo pessoal certos.

Em 2007, ano de lançamento, Julian levou melhor direção no Festival de Cannes, depois no ano seguinte no Globo de Ouro, e sua indicação ao Oscar de melhor direção. O filme venceu ainda o BAFTA de melhor roteiro adaptado por Ronald Harwood, e dois César: de melhor ator para Mathieu Amalric e melhor edição para Juliette Welfling.


Lucas Müller é cineasta e ativista político