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Coluna

Ah, o ano atrás

02 abril 2021 - 12h12

Há um ano atrás, comecei a usar máscaras, mas baixei verdades. Há um ano atrás, passei a lavar mais as mãos, e menos a alma. Há um atrás, o eventual álccol gel passou a penetrar meu cotidiano e a ressecar minha pele. Há um ano atrás, passei a ter mais medo do outro e de mim. Há um ano atrás, os abraços, meu toque preferido, foram restritos, os meus braços ainda sentem falta do movimento. Há um ano atrás, a morte se aproximou, primeiro devagar, depois abruptamente, levou, e leva, pessoas queridas, admiradas. Há um ano atrás, levou também o amor, a alegria, a companhia de outras pessoas que amo, conheço, quero bem. Há um ano atrás, passei a repetir a expressão “meus sentimentos”, passei a perceber mais sentimentos, passei a ter mais sentimentos. Há um ano atrás, passei a chorar mais e dar um jeito de sorrir de algum jeito - é preciso quase compensar a dor. Há um ano atrás, passei a conviver e aprender mais com os defeitos, com as diferenças, com as multiplicidades dos encontros instantes a instantes em casa. Há um ano atrás, precisei redobrar minha concepção de afeto, espera e perdão. Há um ano atrás, precisei, acompanhada – sempre acompanhada – a viver com menos. Menos dinheiro, menos liberdade, menos egoísmo. Há um ano atrás, precisei encontrar tantas de mim, domesticar algumas, libertar muitas, aturar outras e seguir me provando, me tecendo e me descobrindo.

Há um ano atrás, percebi que consigo reconhecer alguém pelo olhar. Há um ano atrás, passei  a reparar mais nas fragrâncias de sabonetes enquanto preciso lavar mais lentamente e cuidadosamente minhas mãos. Há um ano atrás, percebi que devia ter começado a usar mais álcool e sabão em tudo que entra em minha casa, independente de pandemias. Há um ano atrás, minha pele, mais ressecada, passou a receber massagens quase diárias. Havia mais tempo e ainda havia amor. Há um ano atrás, precisei orar mais, exercitar intimidades com minha fé, porque o medo aumentou, mas depois de diminuido, não quero menos intimidade. Há um ano atrás, sem abraços, precisei diversificar formas de afeto, e “ qualquer maneira de amor vale a pena / qualquer maneira de amor vale amar”. Descobri que um olhar entregue à distância ou uma chamada de vídeo podem parecer com um abraço. Há um ano atrás, refleti como nunca, sobre a morte, mesmo já tendo experimentado intensas perdas, e descobri que de fato é preciso cuidar, de algum jeito, de quem fica, sem esquecer de lamentar, profundamente, por cada um que vai. Pensar no nome, pesquisar a história, significar a existencia. Não nos deixar habituar aos números crescentes. Nos humanizar diariamente com a ida. Há um ano atrás, voltei a pular corda no quintal, andar a pé ou de bicicleta, limpar a casa, cozinhar, ler e assistir filmes e séries e até cuidar de mudas de plantas com minhas meninas. Inclusive, há cerca de um ano atrás, passei a usar manjericão e alecrim, temperos adorados, da minha quase hortinha. Há um ano atrás, passei a conviver mais com meu amor, e redescobri porque e apesar de que continuamos felizes juntos. Há um ano atrás, com menos grana e sem possibilidade de aglomerações, decobrimo-nos cozinheiros incríveis e experimentamos programações muito divertidas, os quatro, no espaço casa/quintal. Há um ano atrás, eu vivi mais que muitos anos antes.paHHh

Há um ano atrás é pleonasmo, redundância, mas um ano traz muitas mudanças, e uma delas é não deixar a gramática levar meu texto. Tem muito atrás nesse ano para ser só há. Tem muito Ah! Tem muito presente nesse atrás que não me permite dar um fim perfeito de conclusão. É, tem muito mais Ah nesse Há!

Há um ano atrás é hoje ainda.