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Coluna

‘Ágora’: a destruição da ciência pela ‘política’ da fé

08 outubro 2022 - 14h00

Depois da cena dantesca do falso padre no debate entre presidenciáveis, lembrei de uma carta que tive acesso nessas eleições. Nela estava escrito na frente “Perigo. Depois de ler, se quiser pode rasgar!”, e no conteúdo interno: “Eles nos odeiam e farão leis para nos perseguir.” A carta é de outro falso pastor.

Lembrei porque há uns quinze anos me afastei completamente do meio evangélico aqui em Cabo Frio, ou melhor, uma parte dele, a pior parte, produz no interior daqui, e provavelmente de todo o Brasil...

Existe um filme de produção espanhola chamado “Ágora” (Alexandria, 2009), do diretor chileno Alejandro Amenábar. “Ágora” – nome da grande praça no centro de Alexandria, no Egito, durante o domínio do Império Romano, no ano de 391 d.C – é um drama épico e histórico e conta a história da primeira matemática que se tem conhecimento, filósofa, conferencista, astrônoma e atleta, Hipátia (‘Yπατία), interpretada pela sensível e impressionante atriz britânica Rachel Weisz.

Hipátia buscava os ideais neoplatônicos de liberdade de pensamento e foi uma das pessoas responsáveis pela invenção do astrolábio, instrumento naval usado até o século XIX para determinar a altura do Sol e das estrelas e medir a latitude e longitude do lugar onde está o observador. Também ajudou a projetar o hidroscópio, um antepassado do hidrômetro, usado para medir líquidos e encontrar lençóis freáticos.

O filme mostra a busca de Hipátia por uma dúvida científica e também existencial. “Hipátia obteve tais conhecimentos em literatura e ciência, que sobrepassou muito todos os filósofos de sua época. Explicava os princípios da filosofia aos ouvintes, muitos dos quais vinham de longe para receber sua instrução. Frequentemente, aparecia em público na presença dos magistrados. E não se sentia envergonhada de ir a uma assembleia de homens. Pois, devido à sua extraordinária dignidade e virtude, todos os homens a admiravam.”, relatou o historiador grego Sócrates Escolástico.

Filmado em Malta, “Ágora” é um filme necessário e atual, retrata os métodos utilizados pelas religiões para conquistar/colonizar a cultura, depois a política e a economia em prol de seus interesses. A película expõe facções religiosas em confronto pelo poder. Nesse enredo, Orestes (Oscar Isaac) e Davus (Max Minghella) lutarão pelo amor ou empatia de Hipátia, e Amônio (Ashraf Barhom) e Cirilo (Sami Samir) por sua fé e por sua religião acima das outras, não importando as consequências de seus atos. Todas as vidas se cruzam, cada escolha impactará na vida do outro. O roteiro, do próprio diretor Amenábar e de Mateo Gil, coloca em xeque: haverá lugar para Hipátia (símbolo da ciência e filosofia) nesse contexto de fanatismo religioso e luta pelo poder?

A mesma pergunta ecoa hoje no Brasil, provavelmente em muitos lugares do mundo, onde em pleno século XXI e avanço da tecnologia – a ponto de termos sonda e projeto de colonização no planeta Marte –, pessoas acreditem ainda em terra plana ou convexa, que “vacina mata”, que a religião delas é a única salvadora de almas, que o seu dogma deva se impor sobre os demais, que o “céu/paraíso” seja uma recompensa, e o “inferno” um castigo, e que a vida seja um destino imposto desde o nascimento, sem luta por melhorias, sem refutação das injustiças sociais e sistemas dominantes.

Nesses dias aqui em Cabo Frio durante uma panfletagem política, uma ‘Ágora’: a destruição da ciência pela ‘política’ da fé senhora recusou o panfleto (o que é democrático e natural), no entanto disse acelerando o passo: “Se esse aí for eleito, ele fechará as igrejas!”, e eu, incrédulo, no que ouvi, tentei dialogar, ouvir, saber de onde veio essa desinformação. E sim, ela veio do mesmo lugar que veio o falso padre, o falso pastor, a carta de “perigo”, o motivo do meu afastamento da igreja: da criação do medo para fim de fanatismo/fundamentalismo religioso, da guerra de narrativa através do espetáculo, da “política” da fé para destruição da ciência.

Esses falsos líderes religiosos não simbolizam em nada Cristo. Cristo era amor, não perseguia estrangeiros, mulheres, prostitutas, gays, pessoas de escolhas culturais e religiosas diferentes.

O “pastor” da carta de “perigo”, como tantos líderes religiosos, acredita em sua mente/insanidade que Deus fala por sua boca e discursos de ódio: “Deus fala...”. É a mesma lógica imaginativa e irreal dos personagens do filme “Ágora”, de Amônio e do arcebispo Cirilo, que nada mais era do que um mercenário da fé.

Mesmo sendo proibido em Alexandria e em todo o Egito (a censura egípcia alegou “porque insulta a religião”) e tendo sofrido com a censura religiosa na Itália e nos Estados Unidos, foi o filme espanhol mais visto daquele ano e venceu sete prêmios Goya: Melhor Filme, Melhor Diretor (Alejandro Amenábar), Melhor Edição (Nacho Ruiz Capillas), Melhor Música Original (Dario Marianelli) e Melhor Som (Peter Glossop e Glenn Freemantle).

Mais de 1.600 anos depois, mais do que nunca é necessário proteger Hipátia e, sim, em tempos como este, apenas a filosofia e a busca pelo conhecimento salvam.

(*) Lucas Muller é documentarista e graduando em Letras na UFF.