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Coluna

A máfia nossa de cada dia

21 novembro 2022 - 10h34

Normalmente nosso imaginário sobre máfia nos remete a símbolos de violência ítalo-americanos, como memória através de filmes, do cinema estadunidense e sua hegemonia cultural de produção e distribuição.

Na maior parte das vezes esses filmes são de fatos geográficos e históricos local/regional, ou romanceados, tais como a trilogia de “O Poderoso Chefão”, “Scarface”, “Senhores do Crime”, “O Gangster”, “O Irlandês”, “Aliança do Crime”, entre outros. O crime é algo que sempre desperta curiosidade, seus mecanismos, seu poder intrassistêmico. 

Nunca fui muito adepto do gênero “máfia” no cinema, e muito menos na literatura, sempre me pareceu demais ficcional, aumentado, desproporcional, muito além da realidade concreta que vivo; em 2015 numa dessas andanças culturais pelo Rio, ao lado do metrô carioca, na Avenida Rio Branco, comprei por curiosidade o livro “A Máfia por Dentro”, de Norman Lewis. O livro estava numa das barracas mais baratas, de R$ 2. Não fazia a mínima ideia de quem era o autor, lembro que o abri, e não era romanceado, era um estudo bem interessante, bem escrito, social sobre a máfia siciliana. O título original era “A Sociedade Honorária”, do ano de 1964, e Norman Lewis, um dos jornalistas e escritores mais respeitados da Grã-Bretanha por seus estudos in-loco. 

“Mafioso era, ainda, o braço direito do prefeito, que distribuía todos os empregos da municipalidade, contribuindo para que a máfia dominasse não só pelo medo, mas também pela fome.”, escrevia Lewis, sobre os anos 20, na cidade de Palermo, 100 anos atrás. “O fim é a acumulação de riqueza para obtenção de monopólio a princípio ilegais, mas que tendem a se misturar com negócios legais.”, a minha chave sobre percepção de sistema/mundo começava a virar. Encontrei, depois de um tempo, mais um estudo bem interessante, “A Máfia (mitos e fatos)”, de 1972, do historiador francês Max Gallo. “A base da máfia é o sofrimento humano e corrupção moral.” Não bastou muito até encontrar Roberto Saviano, através do amigo Pedro Sherman, que me emprestará, o livro “Gomorra” (2009), que levou o autor italiano a concorrer ao Nobel de Literatura. Mario Vargas Llosa disse que “Saviano restituiu à literatura a capacidade de abrir os olhos e as consciências”. É um dos livros mais importantes que li na vida.

“As empresas dos clãs determinaram planos diretores, infiltraram-se na saúde, adquiriam terrenos um segundo antes de se tornassem edificáveis e depois construíram, em subempreiteira, shopping centers. Neles impuseram fatias patronais e as próprias empresas de multisserviços, desde o setor de alimentação às empresas de limpeza, dos transportes à coleta de lixo (...) Os clãs da Camorra chegam ao poder pela potência dos seus negócios. E essa condição é suficiente para dominar todo o resto”, escreve Saviano, que logo após a publicação é sentenciado à morte pelas principais máfias italianas (Camorra, ‘Ndrangheta e Cosa Nostra) por expor suas realidades. 

Saviano, graças a proteção da polícia italiana, ainda hoje é resistência, e nesses anos escreveu mais cinco livros. O livro “Gomorra” virou filme homônimo e série. 

O cinema italiano lançou ainda o interessante filme “Suburra” (2015), e posteriormente a série para o Netflix, “Suburra: Sangue em Roma” (2017 a 2020). Diferente dos filmes estadunidenses, esse filme e série falam sobre uma corrupção sistêmica. “Suburra” não mostra apenas as disputas entre máfias e grupos, mas amadurece o roteiro, fala de suas ligações no parlamento italiano, os deputados que agem a favor dos mafiosos e empresários do crime, seus agentes infiltrados no Vaticano, mostra a rede de tecidos nacional e internacional, mostra os bastidores, o negócio maior que desejam, e esse maior negócio é o empreendimento imobiliário; como descreve no alvo Saviano, em outro livro que li, “A beleza e o inferno”: “O tecido conjuntivo italiano é o cimento. O cimento é o sangue arterial de sua economia. Com ele você nasce e se torna empresário; longe dele, todo investimento anda na corda bamba. O cimento armado é o território dos vencedores.”

Quando se vê uma cidade que queima, com fraudes imobiliárias no cartório, onde criminosos ambientais, mafiosos do lixo, de telecomunicações, da construção civil saem sempre vitoriosos para seus empreendimentos, onde políticos locais são agentes letais dessa corrupção endêmica, quando se vê a omissão/submissão, silêncio de vereadores, deputados, ex-prefeitos, prefeito e agentes públicos nas três esferas, há algo de Suburra. Os mesmos mecanismos em toda e qualquer parte. As consequências, todos nós sabemos. Somos todos – inocentes ou não – julgados pela natureza daqueles que são a contrassociedade. É preciso entender as máfias e a todo custo vencê-las. Hoje, em Suburra ou Gomorra temos um futuro sem futuro.