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Coluna

A Escolha de "Mar Adentro"

08 agosto 2022 - 11h05

“Lucas, estão fazendo uma revolução na Espanha! O roteiro tem sido prioridade nas faculdades de cinema, e cursos focados na narrativa se multiplicam”, dizia eufórica
minha amiga, e também cineasta, Bruna Lessa, em 2014, São Paulo. Bruna retornava de seu intercâmbio sobre escrita em Madrid, conseguido por uma bolsa de estudos. Naquela época, eu não fazia ideia
do que ela estava dizendo. A Netflix havia chegado no Brasil há menos de três anos, e plataformas de streaming ainda era algo não tão comum no nosso cotidiano.

Anos mais tarde, esse apreço pelo roteiro bem construído, bem amarrado, a sétima arte do país de Almodóvar e Buñuel explodiria nas
plataformas mais populares: Netflix, Amazon e HBO. O estrondo ducesso de “La Casa de Papel”, série vencedora do Emmy Internacional; o filosófico e popular “Merlí”;
filmes fora da caixinha, como “Um Contratempo”, “O Poço”, “Durante a
Tormenta”, entre tantos; e a interessante trilogia policial “Baztan” (“O Guardião Invisível”, “Legado nos Ossos” e “Oferenda à Tempestade”) tem colocado o cinema espanhol cada vez mais em evidência, numa posição de destaque nos dias atuais!

Tantos filmes novos e séries fazem
buscar também sobre as origens; nessa busca encontrei “Mar Adentro” (2004), do diretor chileno Alejandro Amenábar. Esse filme se tornaria um dos mais marcantes da minha vida. A maneira, a simplicidade com que
são construídos os personagens, a empatia que sentimos pelos seus defeitos, tão humanos, tão embaraçosos, tornam um tema tão sensível como a eutanásia em um filme a ser revelado nessas características dos
personagens, contrários ou favoráveis à sua maneira, à sua medida, nessa trama cotidiana, sem excessos de sentimentalismo.

Ramón Sampedro (Javier Bardem), ex-marinheiro, luta para ter, segundo ele, uma morte digna. Tetraplégico desde os 26 anos e preso a uma cama há quase três décadas,
Ramón decide lutar na Justiça pelo direito de decidir sobre sua própria vida/morte. A advogada Júlia (Belén Rueda) busca algo e encontrará em Ramón respostas. A locutora de rádio Rosa (Lola Dueñas) busca algo e encontrará em Ramón respostas.

Em uma das cenas Ramón diz a Júlia: “Você está sentada a mais de dois metros. O que são dois metros? Para mim, esses dois metros necessários para poder te tocar é uma viagem
impossível.”

“Mar Adentro” é poético, imaginativo, engraçado na dramaticidade; como dizia o dramaturgo e poeta espanhol Lope de Veja, “há risos na dor.” A fotografia do filme é sensorial, nos transmite emoções,
vemos a vida pelos olhos de mar de Ramón quando sua mente caminha ou voa, caminhamos e voamos com ele. O diretor Amenábar traz o debate da eutanásia, mas o foco é a individualidade sob dogmas religiosos e morais (bases de nossa soociedade muitas vezes superficial e quase sempre hipócrita); traz o questionamento chave do filme: a
coletividade pode decidir sobre a liberdade individual? Tudo isso de uma maneira sóbria e reflexiva. A obra de Amenábar é baseada numa história real, em que o verdadeiro
Sampedro pode ter se inspirado na peça “Fonte de Ovelhas”, de Lope, para o desfecho final.

O filme de Alejandro Amenábar é uma obra-prima e um dos mais premiados do cinema espanhol. Venceu o Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro, o Globo de Ouro, o Grande Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza e 14 prêmios Goya, entre melhor filme, direção, roteiro original, fotografia, ator (Javier Bardem) e atriz (Lola
Dueñas).

(*) Lucas Muller é documentarista e graduando em Letras na UFF.