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Coluna

A arte, um erro que liberta o mundo

02 julho 2022 - 06h55

Um dos maiores críticos literários, Maurice Blanchot, diz em seu livro “O Livro por Vir”: “Todo artista está ligado a um erro com o qual ele tem uma relação particular de intimidade. Toda arte tira sua origem de um defeito excepcional, toda obra é a realização desse defeito de origem.” É preciso – talvez – anos para entender a profundidade dessa reflexão.

Depois de impressionar o mundo com seu longa de estreia “Das Leben der Anderen” (A Vida dos Outros) – vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2007, o diretor alemão Florian Henckel von Donnersmarck estreou em Hollywood com seu filme “The Tourist” (O Turista, 2010), estrelado por Johnny Depp e Angelina Jolie. O que tinha tudo para dar certo deu errado. O filme de Florian foi um fracasso de crítica e bilheteria. Quase dez anos se passaram até que seu terceiro longa fosse construído: “Werk Ohne Autor” (Nunca Deixe de Lembrar, 2018).

O novo filme de Florian é imersivo, forte e belo. É uma busca através da arte e pela arte. Talvez todo artista devesse vê-lo, imergir nele. O filme mostra a jornada de Kurt Bernet (interpretado pelo afinado ator Tom Schilling) no auge da Alemanha hitlerista; Kurt ainda criança vê o significado da política de saúde eugenista, a quebra do “erro”, o que é imposto como arte boa e ruim, a separação de famílias inteiras, da eliminação do diferente na vida e na arte. Kurt ainda vê a queda desse regime assassino, o bombardeio aliado em sua cidade natal, Dresden, a separação, agora da mesma nação, que serão dois países: ocidental e oriental.

Kurt descobre-se pintor na Alemanha Oriental (RDA - República Democrática Alemã) e vê como a arte será moldada novamente por uma ideologia, sempre aprisionada a um conceito político dominante. O filme, de forma sensível através dessas décadas (1930- 60), trabalha nesse desenvolvimento do “eu” em meio a esse turbilhão de mudanças históricas. Kurt descobrirá o amor, a estudante de moda Ellie Seeband (interpretada pela talentosa Paula Beer), e esbarará num espectro, o médico Carl Seeband (interpretado pelo grande ator Sebastian Koch), que teve um papel decisivo no destino de sua tia Elisabeth May (interpretada pela excelente atriz Saskia Rosendahl), a quem era ligado, seu laço sanguíneo que mais amava.

A luta por individualidade/descoberta na arte fará Kurt fugir, fugir não, recomeçar, buscar um novo começo aos 30 anos em Düsseldorf, lado ocidental. Ellie será sua base, sem ela talvez Kurt ruiria. O filme “Nunca Deixe de Lembrar” revela o poder da arte, esse mover que salva vidas. “Um passo para frente, dois para trás”, diz o protagonista ao lado de sua amada. O filme de Florian Henckel von Donnersmarck levará o espectador nessa imersão através de duas artes sintonizadas com a pintura: a música, a trilha original e imponente do compositor alemão Max Richter, e a fotografia do estadunidense Caleb Deschanel, de cores vibrantes, lindas e ensolaradas em partes, e cores frias, calmas, azuladas e cinzas em outras.

“Somente na arte a liberdade não é uma ilusão. Somente um artista pode, depois desta catástrofe, devolver ao ser humano a sensação de sua liberdade. Todo ser humano, seja um gari, seja um agricultor, tem a chance A arte, um erro que liberta o mundo de ser um artista. Se ele desenvolve suas próprias habilidades subjetivas sem prescrições. Se não forem livres, totalmente livres, ninguém será. Ao se libertarem, vocês libertam o mundo”, diz o professor Antonius van Verten (Oliver Masucci) durante uma aula na Academia de Arte de Düsseldorf.

Muitas vezes, pequenos encontros, talvez de pessoas que não veremos mais, é determinante em nossas vidas, muitas vezes sem percebemos. Essa naturalidade do ciclo da vida, como as coisas fluem, desfocam, erram, libertam é determinante na narrativa sobre a vida de Kurt (que foi levemente inspirada na vida real do pintor Gerhard Richter).

“A pintura está morta!”, desacredite. “A poesia está morta!”, desacredite, siga, amadureça, a existência é apenas uma. Talvez o maior castigo na arte seja dado a quem desista num erro e enterre seu sonho. O filme de Florian não busca sentenças, ele acerta porque é sempre um fluxo.

“Werk Ohne Autor” (Nunca Deixe de Lembrar) venceu quatro prêmios e foi indicado a outros treze. Foi indicado ao Oscar de 2019 como Melhor Filme em Língua Estrangeira e Melhor Direção de Fotografia. Foi indicado ao Globo de Ouro como Melhor Filme em Língua Estrangeira no mesmo ano. No Festival de Veneza, venceu dois prêmios: Melhor Filme em Competição na mostra Arca Cinema Giovani Award e o Leoncino d’Oro Agiscuola Award, para o diretor Florian Henckel von Donnersmarck, e ainda foi indicado ao Leão de Ouro de melhor filme. Na Alemanha, no Bambi Awards, venceu Melhor Ator para Sebastian Koch, e no Bavarian Film Awards, venceu Melhor Produção.

(*) Lucas Muller é documentarista e graduando em Letras na UFF.