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TRAGÉDIA ANUNCIADA

Prejuízos do incêndio no Peró serão sentidos por décadas

Ambientalista denuncia que falta de coordenação no combate ao fogo fez com que a área afetada fosse do tamanho de 15 campos de futebol

18 novembro 2022 - 09h00Por Cristiane Zotich

A Polícia Civil ainda não tem pistas do incêndio criminoso e de grandes proporções que destruiu uma área significativa das Dunas do Peró, no Guriri, em Cabo Frio, há uma semana. O fogo, que começou na tarde do último dia 10, levou cerca de 40 horas para ser controlado. Segundo ambientalistas ouvidos pela Folha, as consequências da tragédia ambiental são um rastro de destruição muito maior do que a área afetada. De acordo com o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), o incêndio consumiu uma área de 120 hectares de terra. Mas para ambientalistas, que utilizaram softwares para demarcar a medir a extensão do estrago, foram mais de 150 hectares destruídos (o que equivale a cerca de 150 campos de futebol) além de centenas de animais e vegetação típica da restinga.

Anna Roberta Mehdi, ambientalista do Movimento SOS Dunas do Peró, conselheira da APA Pau Brasil e do Parque Estadual da Costa do Sol (PECS), revelou à Folha que foram perdidas várias espécies da flora e fauna locais, muitas já ameaçadas de extinção, como os peixe das nuvens; lagartos de restinga, também chamados de lagartixa da areia; aves, como o formigueiro do litoral, entre outros.

– Perdemos parte da restinga na borda do Parque da Costa do Sol, perdemos muitos animais como porcos espinhos, moluscos, capivaras, cágados e muitas espécies vegetais nativas daquela área de restinga. E a recuperação de todo esse ecossistema não será fácil. O tempo é lento. Temos que esperar a sucessão ecológica. Primeiro, se dá a sucessão ecológica primária, com organismos pioneiros, como protozoários e bactérias. Depois com os organismos como liquens e musgos. Depois as plantas. Depois a sucessão da vegetação, e só aí vêm os animais. Esse é um processo de recuperação que pode levar décadas – explicou Anna.

‘O INEA ESTÁ SUCATEADO’

Segundo informações, o fogo teria começado ao lado da estrada de chão que liga a Estrada do Guriri à Praia do Peró, na altura do Condomínio dos Pássaros, e se espalhando rapidamente. A área afetada pelo incêndio faz parte da Área de Proteção Ambiental Estadual do Pau Brasil (APA Pau Brasil) e, segundo denúncias, não foi um fato isolado. Anna lembra de outras queimadas que aconteceram em 2010, 2012 e 2015, este último, até então, tinha sido o maior incêndio nas Dunas do Peró.

– O incêndio de 2015, no brejo do Peró, foi grande, e sob as cinzas encontramos muitas conchas (moluscos). O de agora foi muito maior e, sob as cinzas, havia menos moluscos. Isso mostra que a perda para o ecossistema é sempre irreparável. Tarda muitas décadas até que o sistema se recomponha. Mas o pior é ver o descaso de quem devia proteger o local. O Inea está sucateado, com poucos guarda-parques e sem viatura. Durante todo o período do incêndio, o chefe do parque não apareceu no local. Para que esses incêndios não continuem a ocorrer, é preciso haver uma investigação, uma perícia, e que os culpados sejam responsabilizados – denuncia a ambientalista, acrescentando que a área sofre com a especulação imobiliária, tendo em vista um grande empreendimento sendo licenciado pelo Inea no local.

– O incêndio também pode ter sido causado pela queima de lixo, como aconteceu há cerca de duas semanas. Então, enquanto não houver uma fiscalização atuante, não tiver a presença de brigadistas do Inea, não tiver uma comunicação entre as instituições públicas, não vamos conseguir debelar esses incêndios – ressalta Anna.

INEA E MP APONTAM INDÍCIOS DE CRIME

Em nota à Folha, tanto o Inea como o Ministério Público Estadual (MPE) confirmaram que existem vestígios de que o incêndio tenha sido criminoso. O MPE revelou, ainda, que não há procedimento instaurado no âmbito da Promotoria de Investigação Penal de Cabo Frio, mas que já requisitou instauração de inquérito policial e procedimento investigatório (126-08305/2022) para apurar os fatos, em razão da suposta prática de crime previsto no art. 250, §1°, II, “h”, do Código Penal, que diz: “causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, gera pena de reclusão de três a seis anos, e multa, com as penas aumentando em um terço se o incêndio for em lavoura, pastagem, mata ou floresta”.

Já a Polícia Civil informou que os agentes da 126ª DP seguem realizando diligências para esclarecer os fatos, mas que ainda não existem suspeitos.

– O Peró é um patrimônio ambiental, é o maior campo de dunas remanescentes do Sudeste brasileiro e que tem vestígios de ter sido um dos maiores acampamentos sambaquis do país. Então, o que a gente pede às autoridades é comprometimento com o patrimônio ambiental da nossa região – desabafou Anna.

Assim como para a ambientalista, a tragédia ambiental gerou comoção na população local, que viu de perto mais uma parte das belezas naturais da região serem consumidas pelo fogo. Proprietária da pousada Casa Di Gaya, que fica próximo ao local atingido, Marta Rocha usou a internet para expressar ao sentimento de ter visto o fogo consumindo tudo ao redor.

– Vocês não imaginam a tristeza que é ver tudo queimando, saber que ali tem animais, plantas, toda uma vida que vai levar anos para se recompor. Meu coração está doendo muito. Imploro para que pensem muito antes de acender algum tipo de fogueira ou algo parecido – desabafou.

Também na internet, várias pessoas informaram que as chamas foram tão altas que puderam ser vistas de outros pontos da cidade. “Quando era umas 23h, tinha um clarão por trás do morro (do Telégrafo, na Gamboa) que parecia que ia amanhecer”, escreveu Taz Mureb.

AÇÃO FALHOU NA COORDENAÇÃO

Para controlar o incêndio nas Dunas do Peró, a Prefeitura de Cabo Frio disse que foi preciso contar com a ajuda do Corpo de Bombeiros de Cabo Frio, de Búzios, de aeronaves da Marinha, voluntários e ainda das secretarias de Meio Ambiente, Direitos Humanos e Segurança, Defesa Civil e Guarda Civil Municipal, que forneceram maquinário e efetivo para a ação. Apesar de tanta gente, na avaliação de Anna Roberta Mehdi, faltou coordenação.

– Os bombeiros estavam agindo de um lado, o Inea do outro, e um não sabia o que o outro estava fazendo. A Defesa Civil também não se comunicava com os bombeiros. Para debelar um incêndio dessa proporção, é preciso haver coordenação, e isso faltou. O chefe do Parque da Costa do Sol, André Ribeiro, não apareceu, e ele deveria estar presente, orientando os guarda-parques, criando uma logística junto aos bombeiros, até porque a expertise dos bombeiros não é incêndio florestal. O papel dos bombeiros é impedir que o fogo avance sobre a pista, sobre as casas ali do loteamento Caravelas do Peró. O papel de preservar a restinga e fauna do Peró deveria ser dos brigadistas, que estavam ali em número muito reduzido – conta a ambientalista.

Anna narra ainda: – Havia quatro agentes ambientais do Inea: três estavam combatendo o fogo e um estava na pista orientando o trânsito. E mesmo assim, esses três brigadistas que estavam no combate ao fogo falaram que não tinham como chegar no cordão frontal das dunas, onde tinha a restinga. Então nós, voluntários da sociedade civil, nos juntamos e fomos fazer o aceiro (técnica que consiste em retirar parte da vegetação para impedir que o fogo continue avançando) e proteger a restinga. No final das contas ficaram os bombeiros e o Inea protegendo a pista e as casas, enquanto a restinga continuava ardendo. Tivemos muitos recursos, muitos equipamentos (dois helicópteros, 52 bombeiros, 10 viaturas dos bombeiros, dois caminhões pipa dos bombeiros, um caminhão pipa do Inea…) e mesmo o fogo acabou se alastrando porque faltou o principal: coordenação.  

Em nota enviada à Folha, o Inea informou que ainda no primeiro dia de incêndio participaram do combate às chamas nas Dunas do Peró as unidades de conservação do Inea, APA Estadual da Massambaba, APA Estadual Macaé de Cima e Parque Estadual da Costa do Sol. Lembrou que para a missão, foi utilizado o caminhão de combate a incêndios do próprio órgão, e que a atuação aconteceu em conjunto com o Corpo de Bombeiros, que teria disponibilizado helicópteros para o combate. Revelou ainda que ambas as equipes responderam prontamente ao chamado. No momento, o órgão ambiental estadual explicou que monitora a área atingida e investiga as causas do fogo, e que realiza fiscalizações periódicas nas Áreas de Proteção Ambiental que gerencia.

ÁREA ATINGIDA É COBIÇADA POR MERCADO IMOBILIÁRIO

A área das Dunas do Peró destruída pelo incêndio é a mesma onde o Club Mediterranée (chamado de Club Med) tenta se instalar desde 2010, quando teria conseguido aprovação do Inea e da Prefeitura de Cabo Frio. Na época, os investimentos totais previstos para a implantação do projeto (que começou como hotel de luxo, e depois mudou para condomínio de casas de luxo) eram de cerca de R$ 95 milhões. A obra chegou a ser iniciada, mas foi embargada pela Prefeitura em 2013: o governo alegou que o projeto foi alterado sem autorização: foram pelo menos 38 mudanças em quase seis anos de negociações para resolver pendências ambientais. Na época do lançamento, diversas entidades ambientais fizeram críticas ao projeto. Com o novo incêndio, a polêmica instalação do empreendimento foi relembrada em várias postagens nas redes sociais. No entanto, segundo informações preliminares da investigação, essa é apenas uma hipótese. Sobre o assunto, o Inea informou à Folha que, “por determinação judicial, o andamento do processo de licenciamento para o empreendimento em questão encontra-se suspenso”.

Além de destruir a vegetação e ameaçar atingir várias casas no local, o incêndio também colocou em risco o prédio da Escola Municipal Professor Oswaldo Santa Rosa, no bairro Guriri. Segundo a Secretaria de Educação, as chamas chegaram muito próximo ao muro da escola, que fica na beira do asfalto, na Estrada do Guriri. Em nota, a Prefeitura revelou que “graças à ação eficaz do Corpo de Bombeiros, não houve feridos ou perdas materiais”.