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Penicos, cacimbas e torneiras: a Região dos Lagos antes do saneamento

Cenário mudou após investimentos que chegam à casa de R$ 1,4 bilhão nos últimos 25 anos

31 outubro 2023 - 17h13Por Fernanda Carriço

O Palácio das Águias estava lotado. Todos gargalhavam com a história que a escritora e memorialista Meri Damaceno contava. Era a primeira quinta de agosto, dia que marcou o relançamento de “Cabistezas — causos do Arraial”, pela Sophia Editora, vinte anos depois da primeira edição do livro que retrata o jeitinho cabista de ser.  O causo da Loja Bragança, contado com pompa pela pesquisadora, traz à luz a história do saneamento na região. Trata-se de uma propaganda que fez sucesso não só em Arraial, mas também em Cabo Frio, onde o pequeno e ousado spot foi veiculado.

“Cagar, todos nós cagamos. Mas cagar com elegância, só com os penicos da Loja Bragança. Avenida Getúlio Vargas, 81. Agora, para quem vem de lá prá cá, é 18, hein!”, ela falou, ao microfone, repetindo o texto publicitário, para deleite e risadaria geral.

Parece apenas piada infame. Entretanto, a propaganda das Lojas Bragança revela, muito além da gaiatice tradicional cabista, uma realidade que moradores da região amargavam décadas atrás: a falta de saneamento básico. O penico fazia parte dos utensílios básicos das casas, assim como os baldes, galões e barris de vinho eram usados para carregar água das cacimbas em Arraial do Cabo e das torneiras das caixas d’água em Cabo Frio.  

Bica construída pela Companhia Nacional de Álcalis para fornecer água nos bairros | Fonte: Rede Social pag. Antigos do Cabo Acervo: Luiz Fernando Raposo Fontenelle

 

“Eu ia muito na casa do meu avô no Porto do Carro. Lá tinha uma caixa d’água comunitária feita pelo governo do estado na época, lá pelos anos 1960”, conta Meri, continuando: “Ainda existem algumas na área rural de Cabo Frio. Ela tinha quatro pilotis e uma caixa gigantesca com uma bica. Aí a pessoa ia lá com barricas ou barril de vinho grande, amarrado na cintura. Eu via isso. Minha irmã ia pegar água pro meu avô, nos potes ou nos baldes. Eu bebi muito dessa água. A gente filtrava num pano branco e bebia assim mesmo. Te garanto que ninguém morreu”, relembra, sempre com pitadas de humor, a memorialista, que também é autora do livro “Água seu curso na história” (2005).


“A gente pegava água da bica para abastecer o filtro de barro”

Os tempos difíceis, em que as pessoas sequer imaginavam que um dia teriam a água encanada em casa, também fazem parte da memória da cabo-friense Ana Lucia Senos. Nascida na Vila Nova, ela se recorda do período em que precisava buscar, nas bicas das caixas comunitárias, água para beber e cozinhar. Uma delas era na pracinha onde hoje se localiza a praça do bairro, na Avenida do Contorno na época, um descampado bem diferente do cenário atual.
“Tinha uma torneira que era ali na esquina da pracinha da Vila Nova. Ela abastecia as pessoas do bairro e do Morubá. O pessoal ia com aqueles barris de vinho, puxando com cordas, para pegar bastante água. Fazia fila. Nós levávamos balde porque nossa casa era próxima à caixa d’água. Por isso, podíamos pegar pequenas quantidades. Eu tinha uns 10 anos. Pegávamos quase todo dia. Antigamente tinha muita água de poço, mas não servia para beber. A gente pegava da bica para abastecer o filtro de barro”, conta Ana Lúcia, que no meio da entrevista cantarola um trecho do antigo funk “Eu só quero é ser feliz” adaptado para a história local. “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci. E poder me orgulhar, nasci na Vila Nova, me criei no Morubá.”

E hoje, como dona de casa, será que dona Ana Lúcia se imagina recorrendo à água de caixa d’água comunitária para as tarefas mais simples do dia a dia de uma família? A resposta é cirúrgica:

“Meu Deus. Não dá para imaginar de jeito nenhum. Graças a Deus mudou muito a vida”, respira aliviada.

 

“Água potável sempre foi muito escassa em nossa região”

Autor do livro “K-36 o zeppelin que caiu no Cabo”, publicado pela Sophia Editora, Leandro Miranda está finalizando sua segunda obra, que vai resgatar histórias de Arraial e da antiga fábrica japonesa da baleia, a Tayo. O pesquisador ressalta o problema da falta de água na época e a qualidade das águas de cacimba. 

“Água potável sempre foi muito escassa em nossa região. Em Arraial, por não ter nenhum córrego ou rio de água doce que pudesse abastecer os moradores, o problema era ainda maior. A dificuldade em se conseguir a água é registrada pelo comandante Thomas Dickinson em seu livro sobre o resgate da carga milionária da fragata Thetis, que naufragou nos rochedos da Ilha do Farol em 5 de dezembro de 1830. Ele descreve em seu livro que a qualidade da água na ilha tinha cor de café fraco e era salobra. A má qualidade da água rendeu inúmeras doenças aos seus comandados e quase pôs fim ao resgate da carga milionária”.

O problema, conta Leandro, continuou nas décadas seguintes. 

“Só era possível obter água potável através de cacimbas, poços particulares que eram abertos em sua grande maioria na Praia Grande ou em poços públicos, predominantemente localizados na Praia dos Anjos, entre eles o Poço Velho, o Poço Novo e o Poço do Sobral. Outro método muito usado pela população era o reaproveitamento da água de chuva por meio de calhas instaladas sob o beiral das casas. Quando o zeppelin norte-americano K-36 caiu no Cabo durante a Segunda Guerra, Betinho Pinheiro usou uma parte da fuselagem que era côncava como calha para recolher a água da chuva em sua cisterna”. 

O pai do Leandro, o cabista Ricardo Miranda, também guarda na memória este tempo de água de cacimba. 

“As mulheres lavavam roupas lá nas cacimbas. E os homens iam pra praia pescar. Depois, bebiam a água das cacimbas. E a maioria levava a água nas latas na cabeça. No Cabo tínhamos muitos poços. Alguns, na frente de suas casas, faziam os poços, que podiam ser usados por vizinhos também. Eu levava água para casa depois da pescaria. Com a chegada da Álcalis veio a água das bicas. Aí a gente carregava a água no tambor de 200 litros. Eu e meu irmão revezávamos na casa do meu pai. Cada dia um buscava. A gente tomava banho de balde e bacia e aproveitava a água da chuva, com a cisterna”, conta seu Ricardo. 

Professor do Instituto Federal Fluminense (IFF), chef e escritor, Fernando Mello contextualizou o impacto da pesca artesanal na alimentação e cultura dos moradores de Arraial, Cabo Frio, Búzios e São Pedro em seu livro “Do Mar à Mesa – A pesca e a culinária típica da região do Cabo Frio: Arraial do Cabo, Búzios, Cabo Frio e São Pedro”, publicado pela Sophia Editora. Ele conta que a falta de água era um problema para a dona de casa no dia a dia. 

“A dificuldade não era só ter água para cozinhar, mas ter água para fazer qualquer coisa. E como isso ajuda no preparo e higienização dos alimentos? Hoje você não precisa ficar controlando a quantidade de água que usa, por exemplo. Uma coisa que é interessante falar é que era muito comum lavar o peixe com a água da praia e deixá-lo de molho no mar, porque aí já salgava e não precisava usar tanto a água doce”, conta Fernando. 

 

25 anos de concessão e a vida de milhares de pessoas transformada

Os tempos em a água doce só era garantida nas bicas, cacimbas ou torneiras de caixas d’água comunitárias ficaram marcados na memória de quem viveu, mas só existem no passado. Nos últimos 25 anos – tempo de concessão da Prolagos no saneamento básico da Região dos Lagos –, os moradores de Arraial do Cabo, Cabo Frio, Búzios, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia gozam do direito de ter água na torneira no dia a dia e dos benefícios que os investimentos em tratamento de esgoto trazem para a região.  

“Em 25 anos de atuação, a Prolagos investiu mais de R$1,4 bilhão em saneamento básico, representando mais que o dobro de investimentos realizados por habitante, do que a média nacional, de acordo com o Instituto Trata Brasil. Em 1998, somente 30% da população recebia água em suas casas, com um abastecimento precário e intermitente, e não existia tratamento de esgoto. Em 2023, o acesso à água tratada está universalizado e 80% do esgoto da região é coletado; e 100% do material captado é tratado, auxiliando no desenvolvimento da cidade, na expansão do turismo e em mais saúde e qualidade de vida para os moradores”, informa a concessionária.