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Coluna

Digitais da existência

28 maio 2022 - 09h00

Quando criança, costumava fazer barquinhos de papel e imaginava longínquas viagens. Certamente meus anseios eram maiores que o oceano diante do meu olhar, já que tal imensidão cabia nas poças formadas pelas chuvas. Pensando bem, levando em consideração o fato de que o pequeno espelho d’água refletia o universo acima da minha cabeça, dá pra imaginar o infinito. Inocência da tenra idade... Utopia de poeta.

Recordo mínimos detalhes da minha embarcação imaginária. Independente do sol, sobre o oceano era sempre noite. Muitas estrelas brilhavam, e a lua era como grandioso farol. Nada de vozes ao redor, mas uma orquestra jamais cessava. Som de cordas, sopro e um piano. O diálogo era harmonioso.

No palco das memórias, cada ser é protagonista. Circunstâncias roubam a cena, mudam o roteiro por completo, conduzindo a mudança na interpretação. Improviso, diria. Estamos preparados para tal arte que nos conduz a indagações?

Memórias da ludicidade e inocência, de verdades escondidas por trás das cortinas do olhar. Universo imaginário que já afirmava as oscilações das ondas, independente das estações. Quantos passeios reflexivos! Mundo paralelo que diversificava a mínima criatividade.

Quando criança, sentava embaixo de uma mangueira com uma pequena porção de sal. Arrancava a casca das mangas ainda verdes, passava o sal e comia. Frutas ácidas eram as minhas preferidas... Recordo quão azedo era o tamarindo. Impossível não fazer caretas. A diversão era garantida e não precisava tanto. Recordo os inúmeros livros que li embaixo de uma jabuticabeira. Foram muitas as gargalhadas. Não podia contê-las quando o livro era “A Morte tem 7 Herdeiros”. O macaco que protagonizava a história não me deixava sem sorrir. Havia um mundo em mim, distinto daquilo que os olhos humanos podiam contemplar. Uma cultura possível. Um universo descortinado pela curiosidade infantil, cujas janelas, constantemente, eram mantidas abertas, permitindo total acesso ao quintal da imaginação.

Bonecas foram conselheiras num mundo onde joaninhas eram vistas como verdadeiros gigantes. Lendas urbanas e histórias das fazendas, contadas com tamanha convicção, confundindo seus contadores, dividindo opiniões e levantando indagações entre o real e a imaginação. O velotrol do meu irmão era nossa moto e vivíamos em fuga... O quintal ficava pequeno, e o cachorro, como grandioso dinossauro.

Não tínhamos medo! Quando a luz acabava nas casas, corríamos todos para a rua, das crianças às mães e alguns pais. Sorríamos ao olhar para o alto e contemplar tantas e “reais” estrelas. Nos perdíamos nas inúmeras contagens... Sempre me sentia cansada antes de chegar na centésima estrela.

Memórias de uma infância que não avisou quão desafiadora seria a vida adulta. Incógnita vida! Silencioso tempo que ecoa suas intenções e nos conduz aos constantes movimentos.

Me pergunto como seria se não fossem as brincadeiras da infância... Se não fosse a própria infância! Certamente há tempo para tudo! Crianças precisam ser crianças e criar seu paralelo mundo, onde crescer é natural. Das inúmeras memórias temos histórias verdadeiras para contar.

Recordar mostra o quanto avançamos. Memórias são as digitais da existência. Bom dia, Região dos Lagos. Bom dia, Cabo Frio. Bom dia, Universo. Afetuoso abraço.

(*) Viviane de Cássia é escritora, membro da Academia de Letras e Artes de Cabo Frio (Alacaf).