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OPINIÃO

Cabo Frio no divã

12 novembro 2019 - 19h38Por Rodrigo Cabral
Cabo Frio no divã

Caro doutor, bom dia.

Sim, quatrocentos e quatro anos. Sabe, eu nunca imaginei que chegaria até aqui desta forma. Quando era mais nova, pensava que, com esta idade, estaria repleta de certezas. Imaginava, sei lá, que seria senhora do meu destino, que conseguiria ter a liberdade completa e irrestrita de alinhavar minhas próprias escolhas, de percorrer meu próprio caminho sonhado tantos e tantos anos atrás.

Preciso confessar que, quando me defronto ao espelho, sinto-me perdida. É verdade, porém, que por momentos sinto ser capaz de dar a volta por cima. Em outros, a realidade pesa. Meus bolsos parecem ter rasgos incosturáveis. Preparo-me para um final de ano remendado por empréstimos. Meus administradores anunciam antecipação dos royalties para pagar o décimo terceiro de servidores. Na Saúde, retrocedo. Faltam-me médicos. Padeço em infraestrutura. Perdi a habilitação para cirurgias cardíacas pelo SUS. E sinto sobre  os ombros o peso de duas CPIs sobre as irregularidades no Hospital da Mulher. 

Hoje, completo quatrocentos e quatros anos. Preciso de uma saída.

Da Educação, o que falar? Meus servidores estão em greve. Seria novidade se não estivessem. Foram promessas não cumpridas. Foram palavras esvaziadas. São crianças sem aulas nas escolas. Multiplicaram-se na minhas ruas os buracos, sinais expostos dos descaminhos que estou a te narrar, e sobre eles me questiono: seriam um sinal de falta de zelo ou de obras mal feitas - quem sabe, os dois? 

Hoje, completo quatrocentos e quatro anos. Quatrocentos e quatro!

De manhã, quando acordei, recebi de tantas pessoas os parabéns pelo meu aniversário. E acabei me questionando o porquê de tamanhas felicitações. Doutor, estou em crise de identidade. Estranhei, inclusive, quando chamavam-me pelo nome. Cabo Frio. Esta sou eu? Soletrei.

Ca-bo-fri-o.

Quatrocentos e quatro anos! É preciso haver uma saída. 

Não me sinto feia, porque, como ainda me sobra autoestima, reconheço minhas belezas. Sou a cidade das paradisíacas belezas naturais. Do encontro da lagoa com o mar. Da história que se respira pelas centenárias ruas da Passagem. Uma cidade de acolhidas e esperanças. De gente que é gente, de carne, osso e paixão por esta terra, do Peró a Tamoios, do Foguete às Palmeiras.

Contudo, o nó na garganta aperta quando engulo a seco a decepção com os rumos que tomei. Sinto-me culpada, sim: admito minha culpa com indulgência. Alguns a quem confiei meu destino relegaram-me o malfadado presente de grego. Confesso minhas péssimas escolhas. Vivi décadas de excessos, que se tornaram vício, transformando-se em razão de existência: acabei embriagada por uma vida de irrealidades, de sórdidas pirotecnias; parecia alegre e ensolarada, mas, agora sei, apenas apressava a chegada dos dias nublados que enfrento.

Ecoam em minhas ruas: quatrocentos e quatro anos, quatrocentos e quatro anos, quatrocentos e quatro...

É preciso haver uma saída. Sei que há uma saída!

Meus moradores mais fieis enviaram-me cartas lindas. Remeteram a mim uma lista extensa de adjetivos. Eu os amo todos, meus companheiros, porque a residência da solidão tornaria vã esta difícil travessia no auge de minha maturidade. Em palavras de amor, me instigam a perseverar. A ter amor próprio. E escrever um novo amanhã.

Eu agradeço.