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Coronavírus: Saúde de Cabo Frio vive crise dentro da crise

Agonia se acentua durante pandemia, com falta de médicos, equipe com medo de contaminação e problemas estruturais

21 abril 2020 - 20h59Por Rodrigo Branco e Rodrigo Cabral

Com problemas estruturais, déficit de médicos e descontentamento generalizado entre suas equipes, a Saúde municipal de Cabo Frio vive uma crise dentro de outra crise – a do coronavírus, cujos números apontam 12 casos confirmados na cidade, entre eles o prefeito Adriano Moreno e secretário de Desenvolvimento Econômico, Felipe Pereira. Uma realidade que é assombrada pela vontade do Executivo em terceirizar o setor.

A ponta do iceberg é o Hospital de Campanha da Unilagos, aberto para receber pacientes com covid-19. O espaço está alugado por três meses, mas a Prefeitura não divulgou qual o valor da operação. Inaugurado com pompa, no dia 10 de abril, inclusive com focos de aglomeração, a unidade não está em pleno funcionamento, ao contrário do que anuncia a Prefeitura. Conforme noticiou a Folha dos Lagos, há falta de estrutura e de equipamentos de proteção individual (EPIs) para os profissionais.

Segundo fontes consultadas pela Folha, a unidade deveria contar com mínimo de 35 médicos para UTI e para clínica médica. Isso sem contar com o restante da equipe: enfermeiros, técnicos, fisioterapeuta, psicólogos e assistentes sociais, por exemplo. Procurada pela reportagem, através da assessoria de imprensa, a Prefeitura não quis especificar quantos médicos trabalham na Unilagos, bem como suas atribuições, limitando-se a informar que tem 240 profissionais para receber os pacientes encaminhados de outras unidades de Saúde.

Para que o hospital funcione plenamente, é necessário que ofereça tomografia, gasometria, fisioterapia, ambulâncias com suporte intensivo com ventilador, EPI adequado, laboratório com exames básicos indicados para o covid-19, trach-care (instrumento utilizado durante procedimento  de traqueostomia), filtro biológico, além de anestesista de suporte, enfermeiro de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) nos plantões e quartos de isolamento.

De acordo com denúncias recebidas pela reportagem, até o fim da semana passada, a unidade ainda não tinha gerador de energia com capacidade para atender emergência. A rede de distribuição de oxigênio também estaria incompleta e, por isso, o CTI não funciona.

No dia 16 de abril, um paciente, em estado grave, foi transferido para o Hospital Ronaldo Gazzola, em Acari, no Rio. A versão oficial da Prefeitura é que o procedimento é feito para evitar sobrecarga na rede de Cabo Frio, aproveitando-se as vagas ainda disponíveis em outros municípios. O translado para a capital do estado, uma operação considerada delicada, foi realizada com EPIs improvisados.

Apesar da explicação da Prefeitura, no mesmo dia em que o paciente grave foi transferido, a unidade recebeu seus dois primeiros pacientes: um homem de 58 anos e uma mulher de 87. Eles não estavam em estado grave.

A montagem de uma CTI não é operação simples.  Todos os profissionais precisam receber treinamento específico. Como a equipe da secretaria já é deficitária, a pasta teve que remanejar parte de profissionais que estavam alocados em outras unidades. É o famoso "cobertor curto", no qual uma área recebe recursos em detrimento de outra. É o caso da equipe de enfermagem do Unilagos, trazida das UPA e do Hospital São José Operário.

"Respirador não salva vida de ninguém. O que salva é uma boa equipe médica e um leque de opções de antibióticos que você tem que ter nessa pandemia, porque ainda desconhecemos o vírus", explicou uma fonte.

Atendimento precário na UPA e no Jardim Esperança

A falta de médicos afeta o atendimento na UPA do Parque Burle e no Hospital do Jardim Esperança. Na UPA do Parque Burle, o protocolo do Ministério da Saúde determina que o atendimento deve ter cinco médicos no período diurno e quatro, no período noturno. A unidade recebe repasse de R$ 500 mil mensalmente do Ministério para o seu funcionamento.

A montagem da equipe do hospital de campanha da Unilagos deixou a UPA trabalhando no limite. Segundo uma fonte que trabalha na unidade e falou com a Folha sob a condição de anonimato, três equipes foram deslocadas para trabalhar no hospital recém-inaugurado, o que deixou os funcionários remanescentes sobrecarregados, como os técnicos de enfermagem que cuidam dos pacientes que ficam em isolamento na unidade.

A escala, que antes era de 24 horas por 120 (um dia de trabalho intercalado com cinco de folga), passou a ser de 24 horas por 72 (um dia de trabalho e três de folga), o que obriga os funcionários a estar duas vezes por semana no local, ou seja, mais expostos a uma possível infecção pelo novo coronavírus. Não houve negociação. Os funcionários que não aceitaram a nova escala foram afastados ou pediram para sair.

A contrapartida oferecida pela Secretaria de Saúde para mais trabalho foi o reajuste do salário de enfermeiros e técnicos de enfermagem, para o piso da categoria, de R$ 2.840 e R$ 1.460, respectivamente. Contudo, a medida não foi vista como uma vantagem. Pelo contrário, a equipe teme os riscos. Para se ter uma ideia, não há equipamentos de proteção para todos os funcionários, apenas para os que trabalham diretamente com o público. Copeiros e auxiliares de serviços gerais, por exemplo, levam máscaras de casa, aponta a fonte.

Entretanto, mesmo a equipe que lida diretamente com os pacientes convive com a incerteza. Não há máscaras do tipo N-95 para todos.  Já as viseiras, muitas vezes, precisam ser compartilhadas, após a devida desinfecção. Macacão do tipo tyvek, que protege o corpo todo do funcionário, também não é disponibilizado.

– A equipe trabalha com medo, pois é uma situação nova. Você vai trabalhar, mas fica na dúvida se está levando o vírus para casa. A gente se pergunta se está fazendo as coisas corretas. Por conta dessa mudança de escala, está todo mundo trabalhando mais tenso, não sabe o dia de amanhã. A maioria trabalha em outro local. A equipe se dedica, mas tem aquela pressão de que não pode faltar, não pode deixar furo no plantão – diz a fonte, que afirma que uma técnica em enfermagem que está afastada, com suspeita de Covid-19.

No Hospital Otime Cardoso dos Santos, no Jardim Esperança, a situação não é muito diferente. Uma funcionária comentou com a reportagem que a situação é preocupante. Ela afirma que casos suspeitos, inclusive de colegas, já surgiram na unidade, que atende à população da periferia da cidade.

– Não tem nada. Está um caos. Não está nada diferente de outras unidades. Estamos literalmente abandonados. Nem sempre a equipe de médicos está completa.  A sobrecarga da enfermagem está ‘osso’. Material adequado nem os médicos têm. A desvalorização com a categoria é muito grande. Somos linha de frente sem defesa – lamentou-se.

Em sua mais recente entrevista à Folha, o secretário de Saúde negou que haja falta de materiais e de equipamentos de proteção na rede municipal, que até o fim do mês terá o reforço da UPA de Tamoios, em obras desde o fim do ano passado.

As OSs como solução?

O atraso dos pagamentos causou o pedido de demissão de médicos nos últimos anos. Além disso, como Cabo Frio ganhou fama de mau pagador, a contratação também é difícil. É o que explica a dificuldade de a Prefeitura contratar intensivistas, já que o descrédito conquistado pelo município nos últimos tempos se soma ao fato de que outras cidades oferecem salários iguais ou melhores.

Diante do cenário, a Prefeitura tentou fazer dos problemas o pavimento para a terceirização da rede municipal. Numa manobra no fim do ano passado, conseguiu na Câmara Municipal a aprovação de um projeto de lei que permite a gestão da Saúde por organizações sociais (OSs). Em sincronia, trocou  o secretário da pasta pela quarta vez. Entrou o ex-deputado estadual e policial reformado Iranildo Campos, saiu o médico Carlos Ernesto Dornellas.

Somente depois de repercussão negativa, no entanto,  a Câmara Municipal de Cabo Frio voltou atrás. No dia 18 de fevereiro, revogou a lei que permite a gestão de setores da administração pública por organizações sociais (OSs) e organizações da sociedade civil de interesse privado (Oscips).

O escolhido de Adriano –  ou de Witzel?

A mudança na liderança da pasta gerou uma onda de animosidade entre os servidores, que se estende até hoje. O fato de Iranildo não ser do ramo e o seu estilo "militar" de gerenciamento são vistos com preocupação. Policial reformado e ex-deputado estadual, Iranildo anda acompanhado de seguranças. Pelos corredores da secretaria, segundo fontes, costuma alardear seus superpoderes, justificando suas ações pelo fato de que "ninguém pode lhe tirar do cargo". Sua indicação veio na esteira da aproximação de Adriano com o governador Wilson Witzel (PSC), conforme confirmou prefeito à Folha. Iranildo foi secretário de Saúde de São João de Meriti entre janeiro de 2001 e dezembro de 2004 janeiro de 2009 e março de 2010. Já o subsecretário Carlos Fernando Pessanha veio de Macaé.

Rigidez causa apreensão

A rigidez imposta por Iranildo tem causado apreensão nos funcionários da pasta. Sob sua ordem, a secretaria endureceu as regras para liberação de servidores que estão no grupo que pode cumprir a quarentena em casa. Agora, o servidor precisa, além de apresentar atestado, passar por avaliação de uma junta médica. A medida endurece determinação do prefeito Adriano Moreno, do dia 17, para liberar do trabalho os servidores que são portadores de doenças crônicas e autoimunes, mediante apresentação do atestado, e também funcionários com 60 anos ou mais, à exceção de médicos e enfermeiros.

Diante disso, sindicatos enviaram ofício ao secretário pedindo a revogação da medida. Já o vereador Rafael Peçanha (Cidadania) notificou o Ministério Público.

O principal temor dos trabalhadores que conversaram com a reportagem, sob condição de anonimato, é o de ficar mais expostos à doença, num momento em que a epidemia começa a se agravar. Portadora de uma doença autoimune, uma funcionária relatou que a passou a noite de terça-feira (7) em claro por conta do medo de exposição. O caso dela será avaliado pela junta médica.

 – Não dormi à noite pensando em como ficaria se eu não passar nessa perícia e ter que ir trabalhar.

Outra servidora também contou que a sensação de temor se espalha entre a equipe.

– Doenças crônicas estão ativas durante a vida do paciente portador da mesma, apresentando ou não sintomas e sinais, podendo se tornar aguda a qualquer momento. Talvez o secretário da pasta, por não ser médico, não saiba disto. Se nenhuma medida for tomada, os funcionários da saúde serão os mais afetados pela virose, o que já acontece em todos os países, mesmo não sendo doentes crônicos.

As denúncias se multiplicam no Sindicato dos Profissionais da Saúde (SindSaúde). O presidente da entidade, Gelcimar Almeida, afirma que está sendo feito um levantamento dos servidores que possuem doenças pré-existentes para entrar com uma representação junto ao Ministério Público, que obrigue a Secretaria de Saúde a liberá-los do serviço de risco, em tempos de pandemia.

– Esses profissionais estão na linha de frente. Tem que haver uma conscientização do gestor da Saúde, o que não há. É preciso tirar essas pessoas do local de risco, pois senão eles deixarão de assitir para ser assistidos  – apela o sindicalista.

'Os preguiçosos vão resistir', justifica secretário

Contudo, em conversa com a reportagem, Iranildo nega que haja rigidez militar na forma de tratar a equipe. O secretário garante que deu carta branca a chefes de setores administrativos a remanejar funcionários que tenham problemas de saúde, de acordo com as necessidades de trabalho. Quanto aos demais, ele defendeu a necessidade de passar pela comissão médica, e afirma que apenas os ‘preguiçosos’ não querem se submeter à regra.

– Jamais obriguei que quem tem diabetes ou qualquer outro problema de saúde a trabalhar. Muitos estão conscientizados de que mudou o pensamento dos funcionários, mas os preguiçosos, esses vão resistir. Estamos no meio do oceano, e teve os preguiçosos que pularam do barco – rebate.

O estilo do secretário, entretanto, incomoda os representantes da categoria. O presidente do SindSaúde afirma que não consegue ter acesso direto a Iranildo para levar as reivindicações dos funcionários e ter as respostas oficiais solicitadas, dada a quantidade de assessores que o cercam.

– Os sindicatos não têm acesso ao secretário de Saúde. Enviamos um ofício, um assessor recebe, a resposta não vem de forma oficial. Fica muito complicado para as entidades sindicais não ter esse feedback da secretaria. Para a gente que quer buscar amenizar a situação isso é prejudicial – queixa-se Mazinho.

Gastos com Hospital da Unilagos são mistério

Não é tarefa simples saber quais os custos da operação que levou a Prefeitura de Cabo Frio a utilizar o prédio da Unilagos como hospital de campanha para atendimento dos pacientes graves do novo coronavírus. A reportagem fez duas tentativas junto à Prefeitura para saber os valores e os moldes do acordo, mas não obteve resposta.

Também não há informações sobre contratos e gastos com maquinários e equipamentos da unidade nas ferramentas de transparência do governo municipal. O fato levou os vereadores a aprovarem um requerimento pedindo informações a respeito da montagem do hospital.

Mais fácil é conseguir saber outros gastos na área de Saúde, flexibilizados pela recente decretação de estado de calamidade pública pelo prefeito Adriano Moreno: R$ 133 mil serão investidos na implantação do novo sistema biométrico de marcação de ponto, que será instalado em até 30 dias; R$ 204,7 mil para contratar uma empresa especializada na manutenção de equipamentos de lavanderia e esterilização de peças nas unidades de saúde; e R$ 655,5 mil para compra de equipamentos eletrônicos, acessórios, material cirúrgico, material e grupo gerador para aparelhar as UPAs deo Parque Burle e de Tamoios.