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Coluna

Sobre a gratidão

17 julho 2022 - 08h25

Começo essa nossa conversa lembrando do fabulista grego Esopo, quando dizia que a gratidão é a virtude das almas nobres. Duas coisas bem claras podemos aprender aqui. A primeira é que a gratidão é uma virtude, ou seja, uma qualidade moral elevada e, em segundo lugar, não está presente no comportamento de qualquer um, apenas no das belas almas.

Não sei se foi lendo Esopo que Benjamin Constant chegou à conclusão de que a gratidão tem memória curta. O mais prudente, no entanto, é lembrar do evangelista Mateus, que recomenda nas narrativas atribuídas ao Cristo que a mão esquerda não deve saber o que faz a direita quando produz uma boa ação. É uma espécie de proteção em dois atos: não nos deixa declinar ao nível dos interesseiros, mas também nos preserva de decepções.

A ingratidão só dói em quem gerou expectativas de virtude e nobreza no outro. Ser grato poderia ser considerado a oitava arte. São poucos os que conseguem entender a diferença entre reconhecimento e dívida. Gratidão não gera promissória, mas pede decoro. É muito diferente quando alguém faz alguma coisa por você esperando algo em troca. Na verdade, essa pessoa fez um favor a si própria. Não existe o compromisso da gratidão quando um favor é travestido de negociata.

Ser grato não é humilhante. Pelo contrário. Quando somos gratos mostramos que somos humanos, incompletos, dependentes uns dos outros e que sabemos tanto reconhecer no outro a grandeza da mão estendida como também nos capacita a exercer essa mesma humanidade estendendo a mão, seja para quem um dia nos ajudou ou mesmo para uma nova pessoa que espera pelos nossos talentos ou possibilidades de socorro. 

O importante aqui é o discernimento das intenções, as nossas e as dos outros.

Dizem os mais antigos que de boas intenções o inferno está cheio. Imagino logo o poeta inglês Milton imaginando o quanto delas caberiam em cada canto do pandemônio do seu “Paraíso Perdido”. Se no inferno as intenções transbordam e se o diabo é o pai da mentira, podemos intuir que muitas das intenções não passam de estratagema do engano. É provável, então, que as realizações formem os degraus da salvação.

Não é à toa que Bento de Núrcia dizia “ora e trabalha”, ou seja, a intenção só se materializa se houver realização. E já que muitos acreditam que o céu e o inferno estão aqui pelas nossas bandas, talvez seja melhor acumular realizações. Mesmo que não tenhamos aplausos, visualizações e likes.

Se você recebeu a ingratidão de alguma forma, não se perturbe. Muito menos se arrependa. Uma alma grata leva tempo para maturar, dá trabalho e não é um percurso retilíneo. Ele é recheado de fraquezas e fortalezas, de dúvidas e certezas, de cansaço, de momentos de espanto, tristeza e vontade de desistir. É feito ainda mais de persistência, resiliência e propósito.

Os ingratos são professores importantes. Nos ensinam a melhor distribuir os nossos dons, a reconhecer a diferença entre o oportunismo e a necessidade e a de observarmos nesse comportamento o inverso do que devemos fazer quando somos nós os que ocupamos a posição de gratos.

E isso afasta os encostados de última hora e atrai, com o tempo, os que chamamos de amigos de sempre.

(*) Paulo Cotias é professor de História.