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Coluna

Íntimo e pessoal

14 agosto 2023 - 13h44

Algumas décadas atrás, ainda tínhamos o costume da intimidade. Não que ela tenha sumido de todo. Reparemos, no entanto, o quanto nos é difícil e estranha essa intimidade e o quão pouco desejada e estranha, a privacidade. Quando as máquinas fotográficas continham os filmes de poses limitadas, cultivávamos o hábito do registro diretamente ligado aos afetos da memória (e havia sempre uma grande expectativa do que elas revelariam).

Atualmente, é desnecessário gastarmos linhas com um descritivo das novas tecnologias. Contudo, vale a pena meditar sobre os seus efeitos. Façamos, pois, um comparativo. Nos tempos dos rolos de filme, não percebíamos a ansiedade extrema dos registros. O que todos sabíamos, era que estaríamos ajudando a construir as nossas memórias ou fazendo parte de uma memória importante de alguém. Importante dizer que o prioritário era a vivência da experiência, sendo o registro um prolongamento do momento, um ativador do vivido. 

Hoje as coisas são bem diferentes. A ansiedade pelo registro precede até mesmo a experiência. Dito em outras palavras: a foto se torna a experiência. Às vezes, até o que vem depois do clique acaba sendo secundário e, em vários casos, nem vivido. Repare nas exposições, passeios, espetáculos e tudo mais, a quantidade de pessoas ávidas pelo registro contínuo, deixando que os seus sentidos e sua “alma”, sequer experimentem de modo integral e imersivo a experiência contemplativa ou envolvente que esses momentos deveriam proporcionar. 

As redes sociais, deliberadamente, implodiram duas importantes dimensões do ser humano, a intimidade e a privacidade. Hoje, para sentir que existimos, é preciso aparecer a todo o momento. O registro da memória é substituído pelo registro da existência. Se eu não posto, não fiz. Posto, logo existo (com o devido perdão a Descartes). 

Essa distorção também alimenta as ilusões narcísicas de que preciso validar nas redes tudo o que faço a toda hora. De que posso “mandar recados” que só importam ao destinatário. De viver um personagem.  E se ninguém repara na minha intimidade devassada, ou no persoagem criado, significa que eu “flopei” na existência e isso tem sérios desdobramentos na saúde mental.

Um bom começo é entender que nem tudo precisa ser compartilhado. Há coisas que pedem a intimidade para que sejam verdadeiramente intensas e especiais. Há momentos em que a privacidade nos dá o espaço necessário para entendermos quem somos. E isso nos fornece também a ponderação sobre o que comentar, o que falar. Evitaríamos rir de muita gente que acredita que “forma opinião” ou é influencer. Mais ainda dos seguidores...

Claro que podemos continuar a compartilhar o que fazemos e mostrarmos às outras pessoas lugares e conteúdos que elas gostariam de conhecer e os momentos que eternizamos, de revelar um pouco de nós, dividirmos saberes e diversões; O importante é não transformar o ambiente digital numa vida artificial. E não esperar que isso nos torne quem não somos. E que, de fato, não precisamos ser.