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Coluna

Família estatal

21 abril 2023 - 06h10

Nas rodas de conversa sobre os recentes temores de ações violentas nas escolas, retornou à superfície do debate a questão do papel da família. Já ouvi dizer, por exemplo, que a escola não é lugar de educar os jovens, que isso é papel da família. Também já ouvi de familiares que o papel da escola é justamente o de dar educação aos seus filhos. Quem está certo nesse jogo de empurra? Ambos estão. Mas para entender isso, temos que recorrer à história.

Nossos ancestrais obtiveram o sucesso evolutivo com base na criação de estratégias de comunicação e cooperação. No tempo em que não existia a escola como nós a conhecemos, a comunidade era a base da sobrevivência, ou seja, ela era a responsável pela construção da noção de pertencimento, proteção e provisão. Na Antiguidade e na Idade Média, onde encontramos diferentes formas de organização dessas comunidades, a família ocupava o núcleo central. A autoridade do pai era inquestionável. Os pater familias atravessaram gerações, legando a gestão da família e a adequação desta à comunidade e ao regime.

Essa autoridade da família (sobretudo do pai) é uma faca de dois gumes. O gume mais perverso e cortante era o do poder de, por exemplo, castigar, espancar, torturar e até vender os filhos (caso houvesse necessidade ou um bom negócio à vista). Os bens eram distribuídos com enorme parcialidade, assim como os destinos de cada um: com quem se casar, onde trabalhar, como viver.

O estado liberal e do capitalismo transformou tudo isso. As noções de comunidade foram desfeitas, as tradicionalidades desmanchadas e o que antes era uma família se torna um conjunto de indivíduos. Assim, a autoridade familiar (especialmente a outrora figura onipotente do pai) deu lugar ao ordenamento jurídico, moral e ideológico do estado e de outras instâncias por ele autorizadas como referenciais. O surgimento da educação pública de massa tinha exatamente esse viés educativo. Surgiram de modo inédito na história leis que passaram a obrigar a família a uma série de compromissos, cuidados e posturas. Caso contrário, o próprio estado tem o poder de transformar a família em uma não-família, retirar-lhe o poder e concedê-lo a outra.

A parentalidade do mundo moderno é uma obra estatal. Por isso, não se pode dizer que suas instituições, como a escola, não tem a obrigação de educar. Assim como os pais não podem se esquivar dessa obrigação. Não é algo fácil. Há outras vozes entre os resquícios roucos da autoridade ancestral e a onipresença das leis que regulam as relações familiares. Igrejas dizem o que fazer, médicos dizem o que fazer, psicólogos, pedagogos, filósofos, juristas, advogados, políticos, frequentadores de botequim, entre outros, dão o seu pitaco, cravando certezas sobre o que fazer.

Família e escola não são polos distintos. Ambas são instituições reguladas pelo estado liberal. O complexo é saber como fazer essa relação funcionar. Sem os antigos abusos, com um apoio mais digno de quem moldou essa família contemporânea.