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Coluna

Cura

03 setembro 2022 - 10h37

O tempo nem sempre cura tudo. Para falar a verdade, achar que o tempo cura é um pouco desonesto. O tempo pode esfriar o temperamento, mudar o foco, flertar com o esquecimento. Mas não cura. Quem cura os males da vida somos nós. As doenças do corpo só começam a conhecer a cura a partir da nossa ação de buscar o necessário e adequado auxílio, e isso começa com o reconhecimento que somos importantes, primeiramente, para nós mesmos.

Os antigos gregos acreditavam no divino poder da cura, nas delicadas mãos da deusa Panaceia, irmã de outra deusa, Hígia, de onde herdamos a palavra higiene e a associamos à saúde. Os romanos a chamavam Salus.

A cristandade medieval colocou a cura como um pilar da graça divina, e herdamos, ainda nos tempos atuais, aquela sensação, lá no fundo, de que os mecanismos do corpo, da mente, das emoções e até da alma até se movem nos fluxos e influxos das lutas do bem contra o mal.

Na Inglaterra e em França os “Reis Taumaturgos” acreditavam-se portadores da graça cristã da cura. E o povo igualmente acreditou que as suas mãos curavam a escrófula (uma espécie de tuberculose linfática).

Por aqui, desde os tempos coloniais, convivemos com a precariedade da saúde, com a fragilidade da existência e com o jeitinho dado por quem não tem quem o cuide. Convivemos largamente com as soluções xamânicas e com os barbeiros sangradores, que também eram cirurgiões, já que os médicos e boticários eram raros e para poucos.

Adotamos um quê de curandeirismo holístico e passamos a tratar o balcão da farmácia como um misto de estratégia de saúde preventiva, consultório e o local onde buscamos algumas curas depois de uma pesquisada no oráculo Google.

É claro que exageramos na dose. Levou tempo para que os médicos e cientistas assumissem para si a primazia sobre o corpo. Precisaram dos políticos e da força das leis para que o curandeirismo se tornasse sinônimo de charlatanismo e, com isso, reposicionar a busca da cura em vez do saber experimentado. Nem tanto ao céu e nem tanto à terra.

Por um lado, o charlatanismo não era lá uma exceção, mas praticamente uma regra. Isso é socialmente muito arriscado. Tanto é que hoje sofremos com ele nos “zap das tias” e nas mídias de fake news que ajudaram fortemente a vitimar desnecessariamente centenas de milhares de pessoas, só nessa pandemia. Mas descartar outros componentes da cura também é um exagero.

Hoje a ciência se achega novamente com as práticas religiosas, com as terapias complementares e com tudo que nos pode gerar conforto, bem-estar e ajudar no processo de cura, seja lá do que for. Só não substitui a ciência, e, sim, a complementa, ajuda, tira um pouco da sua frieza e fatalismo que tantas vezes se surpreende com o que chamamos, na falta de uma explicação definitiva, de milagre.

Sempre teremos algo a curar. Todos os dias, durante toda a vida. É um exercício que nos faz lembrar da imperfeição e nos torna tolerantes, que nos lembra da incompletude e nos faz generosos, que nos lembra da mortalidade e nos faz transcendentes.

(*) Paulo Cotias é professor de História.