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Coluna

Fases

12 agosto 2020 - 15h50

Não sei vocês, mas por aqui vou vivendo de fases. Meus tempos são marcados assim. Hora entrando e saindo pela janela. Amanhece; anoitece... Os dias da semana perderam todo o sentido. Muitas vezes o domingo parece um sábado colorido; uma segunda, sexta-feira animada. Disso eu gosto. Gosto desta transgressão sobre as regras criadas e impostas por sei lá quem! É bom ver domingos e segundas com outra cara. Gosto de olhar diferente para o que nunca se modificou. O que parecia importante demais perdeu o sentido. Aliás, as importâncias mudaram de lugar.

Tenho vivido de fases. Iniciei essa pandemia com mania de arrumação numa rotina destruidora de criatividade. Não há poesia em poeiras, vassouras e panos de chão, espelhos e vidros embaçados, louças sujas empilhadas na pia. Logo depois passei para os armários e gavetas. Dias e dias arrumando, retirando peças para doação, resgatando outras que não via há muito tempo, liberando espaços comprometidos com coisas desnecessárias. Depois parti para a fase da gastronomia. Enlouquecida com receitas e chefs e programas sobre culinária embarquei na minha cozinha mergulhada em temperos, besuntada de azeite preparando pratos e mais pratos para, na maioria das vezes, somente eu saborear. Mas esta é uma paixão que deve ser compartilhada. Ainda assim aproveitei o amor pela literatura e pela cozinha como uma boa receita de bolo: aroma, poesia, sabor. Mas nem só de bolo vive uma pessoa em quarentena. A obrigação do dia a dia detonou meu prazer. A fase da leitura veio logo a seguir. Ao contrário de algumas pessoas, caía como uma luva para me abstrair desse velho novo mundo tão doente. Fugindo dos noticiários os livros me salvavam. Li uns 8 livros assim num só gole. Devorando mesmo. As histórias ajudavam o esquecimento dos dias atuais. Mas veio o tédio e o cansaço. Não conseguia me concentrar. Ficaram de lado. Parti para os exercícios físicos. Precisava estar bem, disposta e com saúde. Entrei em todas as aulas on lines: meditação, yoga, power yoga, pilates, dança, etc, etc, etc. Senti minhas pernas mais firmes, meus braços também. A serotonina me deixava feliz. Continuo me exercitando, mas eliminei o exagero. A atividade física me ajudou nas crises de ansiedade. Outra fase. Achei várias vezes que estava contaminada; outras tantas que ia morrer. Minha imunidade despencou e minha cabeça virou uma loucura! A cerveja e o vinho chegaram como desculpa diária para os dias de desordem da semana. Como segunda não é mais segunda e que quase todos os dias parecem domingos, animei. Como dizemos por aí, “emburaquei”. Até que me atolei em ressacas tsunamis que me trouxeram para a realidade. Beber não era exatamente uma boa saída. Não exageradamente. Hoje degusto, com parcimônia, pretendendo apenas relaxar, sem deixar de ficar sóbria.

Nesse processo interminável de fases fui provando das coisas que fizessem bem a minha alma. Meus olhares se tornaram plurais para os diferentes ângulos de cada momento. Me encantei por geleias. Fiz curso de geleias. Produzi geleias. Voltei a fazer colares. Vendi colares. Deixei os colares. Comecei a bordar. Estou bordando um livro para minha neta. Quero aprender a bordar de verdade. Tenho me interessado por filosofia. Ouço podcasts sobre filosofia. Quero estudar filosofia. Aprendo sobre hortas. Aprendo sobre plantas e jardinagem. Participo de um curso sobre bambus. Leio, assisto, escrevo... Aliás escrever tem sido uma constante nesse novo momento.

Não sei se no mundo em que vivia antes conseguiria me interessar por tanta coisa ao mesmo tempo. Nem sei mais bem quem eu era no mundo em que vivia antes. Somos seres desejantes. Estamos quase todo o tempo querendo algo novo. E que bom poder descobrir, mesmo numa pandemia, que “ a vida tem sons que é pra gente ouvir”. Nestes tempos novos em que buscamos motivação para seguir em frente, escolho a arte como tábua de salvação. Citando Gilberto Gil: “ Minha ideologia é o nascer de cada dia. E minha religião é a luz na escuridão.”

Que venha a próxima fase!