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Coluna

Dentro

22 março 2020 - 20h31

 Lavo minhas mãos. Faço meu café matinal. Abro todas as janelas da casa e ouço melhor o canto dos bem-te-vis. Lavo minhas mãos. Enquanto rego as plantas, sinto o sol sob minha pele e gosto. Lavo minhas mãos. Lá fora um silêncio incomodador. Sinto falta do barulho das crianças ao lado; da senhora que acorda cedo para caminhar; do zelador com sua vassoura arrastada e de seu falar mais alto... Por aqui, todos para dentro de casa. Lavo minhas mãos. Tenho vontade de voltar ao passado. Não tão distante. Aqui perto, na esquina, onde nos encontrávamos para falar da vida, brindar com vinho ou cerveja, dar risadas. Lavo minhas mãos. Minha filha está saindo de uma crise alérgica. Penso que vizinhos podem achar que ela esteja contaminada. Ameaça? Sim. Paranóicos, ainda mais! Preparo um bom suco de frutas vermelhas. Leio que frutas são melhores mordidas. Acredito. Lavo minhas mãos.

Limpo o chão da minha casa com desinfetante. Lavo minhas mãos. Observo as trepadeiras de minhas varandas carregadas de flores. Lá fora a natureza parece não se importar com o que estamos passando. E por que deveria? Termino a leitura de mais um livro. Lavo minhas mãos. Escolho outro e inicio mais uma viagem. Agora sair, só pelas páginas da imaginação dos autores que amamos. Lavo as mãos. Choro escondida dentro do banheiro. Lembro da minha mãe, de meus irmãos, de Kátia, Leila e tantos outros que já não estão mais aqui, para tornar tudo isso mais brando. Lavo as mãos. Ligo a TV. Desligo a TV. Lavo as mãos. O que o sol está fazendo lá fora? Não é justo com um mar tão azul perto de nós... O que será que devemos entender com tudo isso? Leio, leio, leio. “ Tenho dó dos jovens de agora. Tantas coisas que foram alegria para mim não podem ser alegria para eles porque elas simplesmente deixaram de existir.” Mais um dia de sol, lá fora; nublado aqui dentro. Lavo minhas mãos. O que devemos aprender com isso? Observo a yoga da minha filha. Se a yoga é feita para acalmar a turbulência natural dos pensamentos e a agitação do corpo, penso que a hora é esta. Todos para a Yoga! Lavo minhas mãos. Preparo o almoço. Experimento e saboreio.

Mas fome, tenho pouca. Lavo as mãos. Vejo vídeo da neta que está longe. Ela dança enquanto o pai toca violão. Estes tempos faz aumentar a saudade. Ao contrário, do que pensávamos saber, nenhuma rede social substitui estar perto. Lavo minhas mãos. Tenho saudades da casa cheia de filhos e amigos. Lavo as mãos. Aprendo uma coreografia. Danço pela casa. Faço exercícios para as pernas. Transpiro. Gosto. Lavo minhas mãos. Contribuo com um projeto literário. Indico amigos. Gosto. Lavo minhas mãos. Vejo o filme sobre o Freddy Mercury. Me emociono. Lembro de Cazuza. Aids. Outro tempo de medo. Lavo minhas mãos. Durmo mal. Acordo cedo. Me alongo. Respiro. Ligo a TV. Desligo a TV. Desligo o celular. Lavo minhas mãos.

O sol continua lá fora. Ouço Milton: “ Como beber dessa bebida amarga. Tragar a dor, engolir a labuta. Mesmo calada a boca, resta o peito. Silêncio na cidade não se escuta.” Deitada na rede da varanda, vejo um beija-flor se aproximar. O instante breve de seu toque na flor desperta, em mim, o olhar que costumava perder, vendo outras coisas. A beleza é um afago em tempos de se estar dentro. A natureza e a arte são belezas completas. Lavo minhas mãos. Adormeço. Desperto com a noite e  céu estrelado. “Lá fora faz um tempo não confortável. A vigilância cuida do normal. Os automóveis ouvem a notícia. Os homens a publicam no jornal. E correm através da madrugada. E passam a contar o que sobrou...” Deixo a rede e sobre ela o livro que comecei a ler. Entro.

Dentro agora é muito mais profundo que antes. Um silêncio cheio de significados é rompido por vozes de desgosto e barulhos de panelas. De repente, não me sinto tão mais sozinha. Lá fora, dentro de suas casas, pessoas gritam contra a tirania à favor da liberdade. “ e que a voz da igualdade, seja sempre a nossa voz.” Coloco minha esperança sobre a sacada da janela e grito. Minha voz também há de ser ouvida. Há de juntar-se aos milhares de confinados empenhados na mesma luta. Lavo minhas mãos. Ouço Gonzaguinha: “ Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo, é uma gota, um tempo, que nem dá um segundo. Há quem fale que é um divino mistério profundo...”  Lavo minhas mãos, meu corpo, minha alma. Nunca estar dentro foi tão precioso no aprender viver lá fora.