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Paulo Freitas, o eterno Cachorrão

As histórias de uma lenda do jornalismo

11 junho 2019 - 09h33
Paulo Freitas, o eterno Cachorrão

RODRIGO CABRAL

Certa tarde, nos anos 1970, enquanto apresentava o programa Paulo Freitas Show na Rádio Continental, em Campos dos Goytacazes, o jornalista tascou a pérola que eternizou curioso apelido.

– Existe um animal que sofre grande injustiça da sociedade. Temos, por exemplo, nomes próprios como Rocha Leão, Hélio Coelho e Magalhães Pinto. Mas não temos ninguém com o nome de... Paulo Cachorro – disse.

A história é recordada por Moacir Cabral, fundador da Folha,  companheiro de Paulo Freitas em redações de jornais como Monitor Campista, A Notícia, Folha da Manhã e O Fluminense. Cachorro, Paulo Cachorro, Cachorrão ou, até mesmo,  Paul Dog – maneiras como era carinhosamente chamado pelos amigos – escreveu com estilo irreverente, bom humor e invejável faro jornalístico capítulos expressivos da imprensa do estado do Rio. 

Aos 68 anos, o jornalista morreu, na última sexta-feira, após sofrer infarto decorrente de crise hipertensiva. O corpo foi velado na Câmara Municipal de Niterói, no domingo.  E, em seguida, cremado no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro.

Paulo – que também trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil e na Câmara Municipal de Niterói – deixa a mulher, Brigida Freitas,  três filhos (André, Thiago e David Tadeu Freitas) e sete netos.

“Como filho, posso me dizer privilegiado. Cresci absorvendo jornalismo, influenciado por alguém sobre quem ouvi e ouço até hoje ser citado como referência para gerações da profissão”, escreveu Thiago, que tem passagem pela redação da Folha, recordando-se da típica grosseria que temperava o afeto do pai por quem ainda engatinhava na profissão. 

“Uma simples lição sobre uso da crase não era dada sem um esporro descomunal: “Senta aqui, seu idiota, para aprender de uma vez por todas quando se usa e quando não se usa crase”. Sobre o lide, tinha uma frase lacradora, o que fazia pensar duas vezes antes de entregar um texto já digitado em papel para ele sob o risco de rasgá-lo: “Se não prender o leitor na primeira linha, não se dê o trabalho de escrever a segunda”, lembra Thiago.

O texto refinado era a obra final de um repórter que vibrava com os desafios da apuração das histórias. E isso ele sabia fazer como ninguém. 

– Ele se destacava pela vibração com o jornalismo – sintetiza o jornalista Paulo Roberto Araújo.

Wilian Oliveira, que trabalhou com Paulo em O Fluminense, conta que o colega conseguia transformar em manchetes matérias que, a princípio, eram tidas como triviais.

– Quando o conheci,  ele fazia plantão de bairro para O Fluminense. Eram matérias menores, corriqueiras. Nem faziam jus ao profissional que era, pois já tinha vindo de Campos com fama de bom repórter. E ele fazia aquilo dar manchete. Ele me falava: “Gigilian (assim ele me chamava), buraco de rua tem história. Repórter que é preguiçoso”.

O jornalista Vinicius Martins, assessor da Câmara de Niterói, recorda-se de outro feito do amigo.

– Quando entrou para O Globo, passaram a ele uma cobertura no Jockey Club. Era para ser uma notinha, mas virou um escândalo. Tudo porque  descobriu que o cavalo no qual todos tinham apostado havia sido dopado, para que perdesse a corrida.

Na redação, além de fazer matérias, dava aulas. Formou dezenas de repórteres, que aprenderam com as exigências do chefe a responsabilidade do exercício jornalístico. Da extinta sucursal de O Fluminense em São Gonçalo, o jornalista Antônio Werneck, hoje em O Globo, se recorda do “grande coração” de Paulo para receber os focas – assim são chamados  jornalistas em início de carreira. 

– Foi meu primeiro chefe. Foi uma escola, impossível de esquecer.  Era duro na cobrança por boas reportagens, mas com respeito. Um grande profissional, com um grande coração para receber focas como eu. Aprendi muito e ainda aprendo. Teimoso, exigente; Paulo Freitas foi um professor para uma grande geração de repórteres – declara Werneck.

Gustavo Goulart, também de O Globo, foi outro que passou pela “escola Paulo Freitas”.

– Paulo Freitas foi meu chefe por dois anos no jornal O Fluminense. Mais do que isso, foi meu professor de jornalismo na prática. Foi meu amigo. Com ele aprendi a ser repórter. Cobrava muito para que as matérias fossem feitas com responsabilidade. Ao mesmo tempo, é um doce de pessoa. Niterói e o jornalismo tiveram uma perda muito grande – afirma Gustavo.

A dualidade entre as cobranças que não raramente eram duras e o jeito carinhoso de tratar os colegas também é sublinhada por Liliandayse Marinho.

– Nem todos entendiam aquele jeitão – conta ela, também chefiada por Paulo em O Fluminense. 

– Dava bronca e depois abria os braços e nos acolhia com muito carinho. Sabia ser amigo. Chorei na minha primeira matéria porque acabei me emocionando, porque Benedito da Silva, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, citou que eu era neta do líder dos Operários navais assassinado pela ditadura. Liguei pra ele da portaria do Flu. Ele mandou essa: “Engole o choro e faz a matéria. Depois vamos beber. Aí, você chora”.

E assim foram muitas vezes. Depois, sem choro, aprendi a ter raça. Com alguns colegas de minha geração, nos deixou com o couro duro. Cascudos.
Em nota, o sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro classifica Paulo Freitas como “extraordinário redator, crítico e opinativo”.
“Paulo Freitas tem uma história marcante no jornalismo de Niterói e do estado do Rio de Janeiro”.

E a história de Cachorrão continua sendo conjugada no presente. Afinal, integrante do Racionalismo Cristão, ele enxergava a morte com leveza. “A morte, para ele, representa tão somente o desenlace espiritual do corpo. O que se deixa, em alguns casos, são bens materiais, por muitas das vezes valiosos e motivos de disputas entre os vivos que sucedem quem se despede da vida terrena”, explica o filho André Freitas, que também é jornalista e dirige a Rádio Absoluta. “Meu pai leva da vida sua evolução espiritual. E nos deixa seu exemplo de desprendimento, a ser seguido por aqueles que desejem amealhar em sua existência física mais do que bens materiais. Pois, como ele mesmo afirmara, dessa vida nada se leva, a gente só deixa”, conclui André.

Dois pães e o meio café

Pouco dinheiro, mas muita disposição para fazer jornalismo. E, também, para aprontar poucas e boas. Assim foi o início de carreira de Paulo Freitas em Campos, lembra  Moacir Cabral.

– Um dia, fomos a um boteco no mercado municipal para improvisar um almoço com os poucos cruzeiros que tínhamos. À atendente, pedimos dois pães. Um com manteiga e outro sem. Ela ficou observando. Depois, pedimos meio copo de café bem forte. Trocamos as bandas dos pães, dividimos o café e, para ir embora, pedimos um cigarro sem filtro da marca Arizona, muito barata. A atendente colocou a mão na cabeça e disse: “Pelo amor de Deus!  Se estão com fome, podem comer o que quiserem. Isso aí chama miséria para o meu bar!”. Apenas rimos e voltamos lá todos os dias para fazer a mesma coisa, só para irritá-la e chamá-la de tia, porque ela não gostava – conta Cabral.