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Coluna

O legítimo pão francês

14 agosto 2023 - 14h30

Eu estava sentado, observando o fluxo de pessoas e carros no trânsito da cidade, enquanto devorava suavemente um salgado que parecia não ser suficiente para saciar a minha fome sem precedentes. Entre tantos rostos anônimos e apressados, vejo uma face muito familiar: meu amigo Afrânio. Suas expressões, entretanto, não me pareciam as mesmas que ele sempre carregava: estava com um ar de sujeito atordoado, perdido e assustado. Fiz um gesto com o intuito de ser notado e obtive sucesso.

- Rapaz, você me parece estranho – eu disse.

 - Pois é, cara... Se eu te contar o que aconteceu, é capaz de você não acreditar em minhas palavras!

- Bem, no momento eu não acredito é no tamanho de minha fome. Então pode me dizer tudo.

-  Ricardo, olha... sinceramente nem eu sei explicar direito isso, mas eu farei o meu melhor para que você entenda essa situação estranha.

“Estranha” era um adjetivo muito ínfimo para descrever aquela história. O que eu ouvi mesmo era algo que nem o ser mais louco do planeta acreditaria. Mas, verdade ou mentira, era uma baita narrativa!

Tudo começou quando Afrânio resolveu sair à tarde para ir à padaria e comprar alguns pães para fazer um lanche. Uma fornada nova tinha saído há alguns minutos e ele iria pegar pães quentes e frescos, aqueles que já derretem instantaneamente a manteiga e o requeijão.

Ao entrar no estabelecimento, ficou contente por ver poucas pessoas. Isso era perfeito, pois não enfrentaria uma ampla fila e poderia tranquilamente escolher seus amados pãezinhos. Mas, entre vozes avulsas, masculinas e femininas, notou algumas palavras proferidas em outro idioma. Pelo sotaque, percebeu se tratar de uma conversa que mesclava francês e português. Entretanto, olhando ao redor, não conseguiu identificar nenhum ser humano que fizesse coro nesse falatório bilingüe. Mas, à medida que se aproximava dos pães, o som ficava mais evidente.

- Eram eles quem conversavam! – Disse Afrânio

Pelo diálogo, deu para perceber que um pão se chamava Jean e o outro Pierre.

- Mon Dieu, olhe só que sujeito estranho, Pierre.

- Oui, Jean, parece até um cão chupando manga.

Afrânio ficou abobado com o que via. Como que aquilo poderia ocorrer? Estaria ele sonhando ou o drogaram sem que percebesse? E ele, que estava branco como uma folha de papel, continuou a observar os pães douradinhos que tagarelavam normalmente.

- E o que você fez, rapaz?

- Então, Ricardo, eu pensei que fosse coisa de minha cabeça! Resolvi pegar um deles, aleatoriamente, e o coloquei junto aos outros que escolhi. Mas, de fato, nada mudou: eu o ouvia reclamar, dentro do saco, dizendo que aquele lugar era abafado e apertado. Falou mil coisas, disse até que queria ver um filme do Godard antes de ser lanchado!

E Afrânio foi, tenso, caminhando até sua casa. Tentou, durante todo o trajeto, ignorar a existência de um pão falante na sacola que carregava, mas parecia ser impossível não perceber que o mesmo gostava muito de cantar Charles Aznavour.

- Ir à Búzios e ver a estátua de Brigitte Bardot seria fantastique, non acha?

Afrânio não achava nada. Afrânio queria mesmo era acreditar que estava sonhando, embora soubesse que tudo aquilo realmente estava ocorrendo e não se tratava de fantasia.

Finalmente, o atribulado homem chegou à sua casa. Nervoso, mal conseguia segurar as chaves, que acabaram caindo no chão. Ao se curvar para pegá-las, ouviu o francesinho caçoar:

- Desastrado... Nem um parisiense é assim, mon amour.

 Parisienses não são assim pois simplesmente não topam com pães falantes na padaria de seu bairro.

 Ao finalmente abrir o portão de sua casa, Afrânio foi recepcionado pelo seu cão, Lolito, que abanava seu rabo, pulava em seu dono e, especialmente, cheirava aquela sacola de pães. Mas cheirava com muita desconfiança e medo. Será que havia algo realmente perigoso ali?

Ao chegar na cozinha, largou todos aqueles elementos sobre a mesa e foi buscar uma faca. Mas, então, veio uma dúvida: será que cortar um ser daqueles era algo similar a um assassinato ou tortura? “Estou tão louco que cheguei a cogitar a possibilidade de matar um pão!”, pensou o homem.

Lolito estava diante da mesa e rosnava, vez ou outra, ao ver e ouvir aquele estranho bicho falante. E seu dono, agora, aproximava-se com uma faca.

“Será que ele irá sentir dor? Será que posso matá-lo?”. Eram muitas perguntas, medos e pouca ação. Até que Afrânio resolveu cortá-lo de vez.

O pão gritou. E gritou com absurda intensidade.

Assustado, o homem caiu de seu banco. Lolito, num impulso de seu instinto animal, pulou na mesa e começou a devorar ferozmente aquele alimento. E o pão continuou a berrar, berrar e berrar até ser enterrado no estômago do cão.

- Eu não sei o que fazer, Ricardo! Eu já não durmo mais e nem como direito! Tenho pesadelos com baguettes e croissants também. Nunca mais fui à padaria e parei de tomar café da manhã!

- Olha, Afrânio, já ocorreu algo parecido comigo, cara...

- Já? E o pão também era francês?

 - Não, não foi com um pão. Foi com um chiclete. Eu o comprei e ele começou a falar comigo enquanto o mastigava, o que fez com que as pessoas ao meu redor achassem que eu tinha uma segunda voz e era ventríloquo de mim mesmo num monólogo sem sentido.

 - E o que você fez?

 - Bem, eu resolvi calá-lo fazendo dele uma enorme bola. Por um instante deu certo, mas a bola estourou e ele morreu. Desde então, eu tenho evitado comprar objetos redondos, pois temo que a história se repita de alguma forma. Mas, do pior você não sabe, rapaz...

 - Me diga!

- Toda vez que eu encosto a barriga em uma quina de móvel ou em algo pontudo, tenho medo que ela exploda e eu morra.