Minha infância inteira se passou num lugarejo estreito. Espremido pelo vento incansável de um Cabo e as águas do mar, que chegavam até as calçadas das casas. Lugar pequeno demais para possuir estádio de futebol ou time oficial. Mas, como a vida é cheia de contradições, lugar repleto de crianças loucas para fazer parte de uma equipe de futebol.
Devia ser por isso que no vilarejo havia tanto time. Bastava uma esquina. Uma rua. Um morador com nome engraçado, tipo Júnior Mike Tyson (que talvez se escrevesse de uma forma abrasileirada), e pronto! Formava-se um time. E eram vários! Time da Igreja. Time da Lagoa Lagamar. Time da Rodoviária. Time da Vila dos Pescadores. Time do Seu Manoel da Zenza. Time do Filho do Ailton. Time da Rua de Cima. Time dos Gêmeos. E o grande Time da Rua de Baixo, onde suei a camisa por algumas vezes.
Apesar dessa vasta fauna de equipes exóticas, o vilarejo jamais organizou uma competição entre elas. Os escretes disputavam jogos isolados. E cada peleja valia como um título. Ganhar um jogo dava a sensação de erguer um troféu imaginário e valioso.
Eram tempos de pés descalços. Naqueles campos de capim com areia e terra, a vistoria das condições do local de jogo se limitava à existência das duas balizas. Se elas estivessem no lugar certo, o jogo estava garantido. Na TV assistíamos a jogadores vestindo camisas que há pouco haviam deixado de ser de acrílico tricotado. As chuteiras eram todas igualmente negras. Todas igualmente fabulosas para nós que corríamos descalços. Mas havia uma coisa que unia todos nós que jogávamos, nas nossas várzeas ou nos Maracanãs: o erro.
Creio que o futebol seja o esporte coletivo que mais aceita o erro. Em nenhum outro esporte pode-se errar tanto num único jogo e, ainda assim, vencer o adversário.
Naquele tempo da minha infância, num sábado, fomos convidados para um jogo contra o Time da Boa vista. A partida seria no campo deles, há alguns quilômetros de distância da Rua de Baixo. Nosso técnico nos levou na carroceria de madeira de uma caminhonete. Um bando de meninos se sentindo como um time a excursionar profissionalmente no estrangeiro.
No campo, antes de começar o jogo, me lembro bem de duas coisas: a euforia e o nervosismo, tão juntos que se transformavam em um sentimento ainda sem nome. E os dois técnicos que combinavam as regras. “Mão na bola é falta. Bola na mão, não.” Jogo iniciado e o ponta direita deles desmontava nossa marcação a cada ataque. Nos contra-ataques tínhamos uma estratégia: chutar, chutar de longe, chutar alto. O goleiro do Time da Boa Vista devia ter um metro e meio de altura.
Levávamos um sufoco ao final da partida. Suportávamos a duras penas o ataque adversário. Nosso time inteiro estava plantado dentro da grande área. Bicando para o mato toda bola que chegava. E eis que, no último ataque, um chute rebatido, a bola sobrou venenosa na minha frente. Bastava dar um bico. Foi o que tentei. A bola ricocheteou na minha canela, subiu e encontrou meu braço aberto, que fazia um contrapeso para eu não cair.
Trovoaram pedidos de pênalti. Olhares de desaprovação nublaram minha atuação. Eu havia errado feio. Então, o juiz teve a paciência de esperar os gritos perderem o fôlego para relembrar a regra combinada no início do jogo. “Bola na mão não era falta”. Fiquei aliviado! O placar não seria mais alterado. Terminaria como estava, 4 X 1 para os donos da casa.
Passaram-se anos desde então. Sou a favor do VAR (Video Assistant Referee). A favor do jogo limpo. Mas acho importantíssimo colocarmos nossas certezas mais contemporâneas e reluzentes em questão.
Afinal, será que o VAR também pode errar? Ou isso só recai sobre nós, pobres peladeiros amadores em momentos futeboleiramente humanos?