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DUAS VEZES VÍTIMA

OAB Mulher vai apurar denúncia de descaso policial para registro de assédio em ônibus

Caso aconteceu dentro de ônibus da linha Bacaxá x Cabo Frio

24 junho 2022 - 12h09Por Cristiane Zotich

A Comissão da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Mulher) de Cabo Frio abriu um processo administrativo para apurar o caso da professora Laryssa Costa, de 25 anos. A educadora denunciou ter sofrido assédio no ônibus da linha B460 (Bacaxá X Cabo Frio), na última segunda-feira (20), e descaso por parte dos policiais (homens) da Delegacia da Mulher de Cabo Frio, e do Núcleo de Atendimento à Mulher da Delegacia de Araruama, que teriam criado uma série de dificuldades para registrar a ocorrência.

À Folha, Laryssa contou que mora em Cabo Frio, mas às segundas e terças dá aula em Araruama. Na última segunda (20), na viagem de volta pra casa, teria sido assediada por um idoso que estava sentado ao seu lado. O caso aconteceu dentro de um ônibus da Auto Viação Montes Brancos, que pertence ao grupo Salineira.

Entrei no ônibus, e uns dois pontos depois um senhor de idade subiu. O veículo estava vazio, mas ele sentou do meu lado, segurando um pneu. Cansada, eu dormi, e acordei no susto com ele passando a mão por dentro da minha coxa, na virilha. Eu dei um pulo e ele também se assustou e parou. Até cheguei a pensar que estava imaginando coisas. Então virei a cabeça pra janela, fechei os olhos e fingi que estava dormindo de novo. Foi quando ele, novamente, passou a mão em mim e eu comecei a gritar pedindo que tirassem ele do meu lado porque ele estava passando a mão em mim  contou Laryssa.

A professora contou que apesar de anunciar que estava sendo assediada, apenas um rapaz que estava em outro banco se levantou e foi perguntar o que estava acontecendo. 

Eu estava tremendo, mal conseguia falar, mas contei que ele tinha passado a mão em mim. E o idoso, do meu lado, negando. O rapaz, então, tirou o idoso do meu lado e mandou o motorista parar o ônibus. A essa altura já estávamos em Araruama, e o idoso foi expulso do ônibus. Depois disso, o rapaz ainda tentou me acalmar antes de voltar para o banco dele. O restante dos passageiros, e o motorista, pareciam fazer de conta que nada tinha acontecido.

Em um vídeo postado nas redes sociais, Laryssa denunciou que no dia seguinte ao assédio foi direto à delegacia da mulher de Cabo Frio, mas só havia homens de plantão. À Folha, ela disse que eles fizeram pouco caso da situação e criaram dificuldades para registrar a ocorrência.

Perguntaram "mas ele tocou na sua bunda?", "você sabe o nome dele?", "sem nome a gente não pode fazer nada". E eu respondi: "o homem me tocando, me assediando, e você queria que eu perguntasse o nome dele?". Depois disso disseram que não podiam fazer nada porque o caso foi em Araruama e eu tinha que ir pra delegacia de lá. 

Em Araruama, mais problemas: a professora contou que os policiais (também só homens) que faziam atendimento no Núcleo de Atendimento à Mulher da delegacia não queriam tratar o caso como assédio. 

Na cabeça deles, se não fui estuprada, e se não estava sem roupa, então não significava nada. Mostrei imagens feitas pelo celular, e disseram que imagem não serve pra nada, mas que se eu quisesse anexá-las como prova, teria que comprar um pen drive do meu bolso e entregar na delegacia. Fui assediada e ainda tive que pagar R$ 45 para anexar as imagens como prova na ocorrência. Levei duas horas pra ser atendida, tive que contar minha história na frente de todo mundo na delegacia, tive que me expor na lan house pra passar as imagens do meu celular pro pen drive, e eu tenho certeza de que não vai dar em nada. É por isso que muitas mulheres não denunciam. Fui humilhada e exposta três vezes : pelo homem que me assediou, pelos passageiros e pelo motorista que me ignoraram, e pelos policiais que fizeram pouco caso da situação. Estou me sentindo um lixo. Todo mundo sempre diz que a vítima não pode ficar calada, que ela tem que denunciar. Denunciar pra que se a própria polícia nos trata com indiferença? O que me deixa mais inconformada é que ele (o acusado) estava no telefone falando com a esposa, então eu imagino que ele seja pai, avô. E se fez isso comigo num local público, quem garante que não faz com outras pessoas também?   desabafou Laryssa.

Após tomar conhecimento de todos os fatos relatados pela professora, a presidente da OAB Mulher de Cabo Frio, Michelli Fernanda Tito Ferreira Alves, contou à Folha que, a princípio, houve uma série de erros no caso, a começar pela liberação do acusado por parte do motorista do veículo.

Estamos abrindo um processo administrativo pela comissão da OAB Mulher pra gente verificar o que aconteceu, e analisando a possibilidade de um curso para as empresas, como no caso a Salineira, mostrando como os motoristas devem proceder em casos de abuso e violência contra a mulher dentro dos coletivos. Realmente é uma lástima terem deixado esse senhor ter saído do ônibus. Deveriam ter conduzido ele pra delegacia para que as medidas pudessem ser tomadas. O procedimento seria levar a vítima e o abusador para a delegacia mais próxima. 

Michelli lembrou que o assédio sexual se caracteriza por uma ação reiterada, "mas dependendo do caso pode até ser considerado como um ato único, em que a vítima, que pode ser mulher ou homem, acaba sendo intimidada com incitações sexuais inoportunas". Também falou sobre o tratamento dispensado à vítima na Delegacia da Mulher de Cabo Frio, e no Núcleo de Atendimento à Mulher da delegacia de Araruama: além de dificultarem o registro da ocorrência, os policiais (todos homens) teriam tomado o depoimento de Laryssa na recepção, na frente de outras pessoas, expondo ainda mais a vítima.

A mulher pode registrar a ocorrência mesmo que o autor seja desconhecido. O procedimento policial correto seria levar a vítima para um local reservado para tomar o depoimento dela. Na verdade, o atendimento sendo realizado por uma autoridade do mesmo sexo que a vítima é o melhor, pois transmite mais segurança até mesmo para que ela possa relatar o fato com mais detalhes, sem nenhum constrangimento ou discriminação. Mas o papel da polícia é investigar. Eles possuem o poder de polícia para justamente colher os fatos e verificar as informações prestadas pela vítima. Seria extremamente importante que fossem solicitadas as imagens do coletivo para que possam identificar o abusador. E fazer a oitiva do motorista para que ele possa até mesmo ajudar a descrever esse agressor contou a advogada.

A Auto Viação Montes Brancos disse à Folha que "lamenta profundamente o ocorrido e repudia toda e qualquer forma de assédio, importunação ou desrespeito à mulher". Informou também que as imagens de monitoramento do veículo estão à disposição da vítima e das autoridades para colaborar com a investigação, mas não quis comentar sobre o fato do motorista ter deixado o acusado sair do ônibus ao invés de levá-lo para a delegacia.

A Folha também entrou em contato com a assessoria da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, questionando todo o tratamento que teria sido dado à vítima, além da ausência de policiais mulheres para o atendimento nas unidades de Cabo Frio e Araruama, mas não teve resposta até o fechamento desta edição.

LUTA POR DIREITOS E CAMPANHAS DE CONSCIENTIZAÇÃO

Apesar do descaso com que a professora Laryssa Costa foi tratada nas duas delegacias da região que possuem atendimento à mulher, a presidente da OAB Mulher de Cabo Frio explicou que as vítimas precisam exigir seus direitos. Também reforçou que abrir mão da denúncia, mesmo com o descaso policial, não deve ser uma opção:

- Recolha as provas que tiver, vá à delegacia acompanhada e, caso não seja atendida, exija seu direito. A vítima também pode registrar a agressão pela Central 180: é rápido e por telefone. A falta de estrutura das delegacias não justifica exposição pública. Se você ficar com medo, vergonha ou tiver que relatar fatos íntimos, pode solicitar à autoridade um lugar reservado para depor. Temos que ter uma abordagem muito delicada pois estamos tratando de uma mulher que passou por um trauma. Temos que ter mais campanhas de conscientização. Temos que investir em informação para as empresas, e até mesmo a mídia pode ajudar a propagar a importância da denúncia. Quanto às delegacias, temos que massificar o trabalho de conscientização desses policiais, até mesmo nas delegacias que são especializadas para a mulher. A OAB está de portas abertas para dar apoio jurídico a essas mulheres vítimas de abuso, seja ele qual for. Podemos acompanhar até a delegacia e acompanhar o caso.

PSICÓLOGA FAZ ALERTA PARA AS SEQUELAS DESSE TIPO DE CRIME

A psicóloga Ana Paula Bento Valente contou à Folha que do ponto de vista da saúde mental, o assédio sexual pode causar sofrimentos a curto e longo prazo. 

Tem a vergonha, o constrangimento, o sentimento de culpa, a ansiedade, o isolamento social, a vergonha do próprio corpo a ponto de mudar seu modo de se vestir. A vítima também pode ter crises de choro, começar a apresentar prejuízos na sua autoestima, e até depressão, podendo inclusive desenvolver pensamentos suicidas, sentimentos de nojo, irritabilidade e passar a apresentar dificuldades nos relacionamentos amorosos.

Ana Paula também revelou que os traumas gerados por esse tipo de violência podem ser minimizados e tratados a partir de um acompanhamento psicoterapêutico, "onde  a vítima ressignificará suas lembranças traumáticas e desenvolverá novamente sua habilidade de autoestima, de forma a se sentir mais segura e dona de sua vida novamente". 

A pessoa pode contar também com o apoio e acolhimento dos familiares e amigos por meio de uma rede de apoio estabelecida com a ajuda de um psicólogo, e ainda através da participação em grupos de apoio às vítimas desse tipo de violência.

Em Cabo Frio, a presidente da OAB Mulher, Michelli Fernanda Tito Ferreira Alves, disse que as vítimas podem contar com o apoio do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), que funciona no prédio da Secretaria Municipal de Assistência Social, na Rua Florisbela Rosa da Penha, n°292, no Braga. O funcionamento é de segunda à sexta-feira, das 8h às 17h.