Ainda segue rendendo assunto a audiência pública que o governo municipal de Cabo Frio promoveu na última semana sobre ordenamento do bairro Braga. O objetivo era reunir moradores do local para debater assuntos como coleta de lixo, infraestrutura e o combate a ferros-velhos clandestinos, usuários de drogas e pessoas em situação de rua. Durante cerca de 40 minutos, o prefeito Serginho Azevedo ouviu e anotou questionamentos feitos pelos participantes. Mas, quando começou a discursar, um dos assuntos não foi bem recebido.
Quase no fim da audiência, Serginho chamou a atenção de pessoas que costumam fazer caridade e ajudar pessoas em situação de rua com doação de dinheiro.
– Eu mesmo dei dinheiro várias vezes, mas, gente, não façam mais isso. Não acomodem as pessoas nessa situação. Por que eu estou dizendo isso? Porque essas pessoas não ficarão sem ter o que comer. Nós temos a assistência social para assegurar que todos tenham alimentação. Não estimulem a pessoa a se acomodar em situação de rua. Não façam isso – disse o prefeito, pedindo que igrejas e entidades que costumam doar comida se juntem à assistência social do governo para uma ação conjunta.
O discurso arrancou aplausos, mas também protestos e vaias de parte do público presente no encontro. Uma das pessoas a confrontar o discurso do prefeito Serginho foi o psicólogo Nathan Barbosa, que há 10 anos atua com políticas de assistência social e pessoas em situação de rua, e que já foi voluntário em projetos de distribuição de comida e cobertores durante a pandemia.
– Estive presente durante toda a audiência. O momento específico do “não façam isso”, referindo-se à esmola, foi dita pelo prefeito no contexto de uma crítica às ações de caridade e o papel das igrejas com as pessoas em situação de rua. Foi uma postura que nitidamente propôs desincentivar a população de ajudar pessoas em situação de rua, sob o velho argumento de que essas ações (um prato de comida) deixariam as pessoas cômodas nas ruas – revelou Nathan em conversa com a Folha.
Para Nathan, negar esmola ou prato de comida não resolve o problema.
– É urgente aumentar a estrutura de trabalho das equipes técnicas do município. Na assistência social e na saúde, é preciso mais psicólogos, assistentes sociais, médicos e enfermeiros com condições de trabalho para acompanhar as pessoas em situação de rua.
No entanto, segundo o psicólogo, “atualmente se vê o protagonismo de cargos comissionados e políticos sem qualquer amparo técnico, achando que uma boa intervenção é retirar pertences de pessoas, colocá-las em ônibus e outros absurdos que demonstram a cooptação dos órgãos públicos para aumentar capital político pessoal”.
Segundo Serginho, todas as pessoas em situação de rua que vivem em Cabo Frio estão devidamente cadastradas.
– Nós fizemos um censo. Quando assumimos o governo havia 250 pessoas em situação de rua cadastradas, mas nosso censo real e efetivo mostra que são 478 pessoas. Destas, nossa assistência social já encaminhou 60 de volta à família, em outro município. Mas é como se não tivéssemos resolvido nada porque todas as outras continuam fazendo um movimento cíclico.
– Se a pessoa for de Cabo Frio, vamos encaminhá-la ao trabalho. E aquele que não for cabo-friense, eu vou levar pra fora de Cabo Frio. Mas não vou fazer de qualquer maneira, nem usando a força. Mas fazendo como já temos feito, dentro do processo de tratamento, reencaminhando-o para a família. Quem não é de Cabo Frio eu não vou acolher, mas vou tratar para que ela possa voltar pra casa. Andando na madrugada e conversando com algumas pessoas, soubemos de pessoas que foram trazidas pra cá, deixadas na rua, e não sabem nem em que cidade estão. Municípios que estão trazendo pessoas em situação de rua e dependentes químicos para nossa cidade para se livrarem do problema. E nós vamos tratar o problema – prometeu.
Serginho também anunciou que vai retirar a sede do CAPs do Braga e o abrigo (casa de passagem) de São Cristóvão, por serem próximos aos dois pontos de venda de crack na cidade (Morubá e Manoel Corrêa). Com relação ao abrigo, falou que o governo já está em busca de um novo lugar, “próximo à zona rural, que seja mais acolhedor e que propicie, inclusive, tratamento terapêutico, psicológico, psiquiátrico, do CAPs, e que a pessoa possa trabalhar, se ela quiser”. O prefeito também sinalizou como positiva a sugestão de criar uma Comunidade Terapêutica dentro do abrigo municipal.
Após a audiência, Nathan lançou na internet um abaixo-assinado com o objetivo de “impedir o retrocesso contra pessoas em situação de rua”. O documento (disponível no site www.change.org) já reúne cerca de 250 assinaturas (a meta é chegar a 500). Nele o psicólogo afirma que a casa de passagem não pode ir para uma área rural.
“O objetivo de nossa tipificação nacional é fortalecer vínculos familiares, construir autonomia e permitir que ocupem a cidade de forma digna. Numa zona rural, a dependência da Prefeitura se tornará ainda maior, de forma que esta localização só servirá para tirar a pobreza dos olhares alienados de quem não deseja vê-la. Nossa tipificação nacional não indica comunidades terapêuticas. Apesar do prefeito não ter dito este nome, a descrição dos serviços da nova casa de passagem na zona rural apontam a possibilidade de uma comunidade terapêutica que não faz parte do SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Nossa população vem debatendo os absurdos cometidos nesses espaços e o Brasil já decidiu que não vamos assimilar esta proposta nas nossas políticas públicas”, diz um dos trechos do abaixo-assinado.
– Essa gestão está preferindo atender os anseios de limpeza social e criminalização da pobreza presentes em alguns segmentos da sociedade que estão distantes da compreensão sobre o que leva as pessoas ficarem nas ruas. É preciso ter espírito público para mostrar que a pobreza não é um problema moral, como falta de vontade de sair das ruas, tampouco a pobreza é sinal de criminalidade. Eu presenciei um discurso belicoso em que se supõe que pessoas em situação de rua são perigosas e, na audiência, o medo apareceu como pretexto para justificar ações que violam direitos e princípios éticos básicos. Não é possível esperar da população uma compreensão global sobre a pobreza, então é responsabilidade do poder público conscientizá-la. A população pode ajudar cobrando um manejo ético e humano do problema, focando na origem e não criminalizando quem está nas ruas – pontuou o psicólogo, que criticou também a forma como o governo vem atuando na questão do combate ao uso de drogas no bairro Braga.
– Atualmente a gestão municipal está privilegiando as ações instagramáveis, isto é, as ações que permitem vídeos para redes sociais, normalmente protagonizados pelo atual secretário. Através desses registros, é possível testemunhar uma atuação preocupante. A atual gestão está associando a assistência social com órgãos de segurança pública, crendo ser necessário um choque de ordem que é uma verdadeira degeneração da política nacional de assistência. Isso passa a impressão de que a atual gestão vê na pessoa em situação de rua um potencial criminoso, um discurso muito repetido na audiência pública” - avaliou.