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Monumento histórico de São Pedro da Aldeia é alvo de questionamentos

25 agosto 2023 - 12h25Por Cristiane Zotich
Monumento histórico de São Pedro da Aldeia é alvo de questionamentos

Um monumento histórico localizado na Praça Agenor dos Santos, em frente à Igreja Católica, no Centro de São Pedro da Aldeia, está sendo alvo de questionamentos. Conhecida como “Monumento à catequese”, a obra, feita em pedra sabão, “representa a obra catequista dos padres jesuítas junto aos cerca de 500 indígenas que vieram da capitania do Espírito Santo para São Pedro da Aldeia na época colonial, além dos que já viviam por aqui”. Ela é retratada pela imagem de um jesuíta na frente de uma cruz alta, e em volta dele três indígenas ajoelhados, o que segundo pesquisadores e historiadores representaria um comportamento de submissão.

As discussões em torno do monumento começaram durante a II Semana Decolonial do Patrimônio de São Pedro da Aldeia, promovida pela Coletiva Gecay, e que aconteceu entre os dias 17 e 20 deste mês em celebração ao Dia Nacional do Patrimônio Cultural, comemorado em 17 de agosto em todo o Brasil.

Em conversa com a Folha, a historiadora Vanessa Dias, fundadora da Coletiva Gecay, contou que os questionamentos começaram a ser feitos logo no primeiro dia do evento, durante participação da doutora em História, Silene Orlando Ribeiro.

– Silene estuda os indígenas daqui há mais de uma década. O tema da palestra dela foi “A presença indígenas em São Pedro da Aldeia anterior a colonização”. Antes da fala dela eu fiz uma provocação pedindo que o público presente visualizasse o “Monumento à catequese”. A obra é uma homenagem ao processo de catequização dos indígenas, processo esse que foi violento, com o intuito de apagamento da cultura indígena e submissão à igreja católica. O assunto teve continuidade durante a execução do projeto Rolé Histórico, que traz o olhar decolonial para versar com os nossos patrimônios e histórias, buscando levar para o debate outros agentes e vozes do nosso território presentes no processo de colonização que foram apagadas e silenciadas, e são até os dias de hoje. A iniciativa caminha junto aos objetivos da Lei 11.645 de 2008 que firma a obrigatoriedade do ensino da história indígena e afro-brasileira no currículo escolar - contou Vanessa.

Segundo o site oficial da Prefeitura de São Pedro da Aldeia, o monumento “ressalta a relevância da companhia de Jesus e dos indígenas na formação do núcleo urbano de São Pedro da Aldeia”. Representa, também, “a importância da religião no contexto da colonização do Brasil e São Pedro da Aldeia”. Não há informações sobre a data de criação da obra nem sobre o autor do monumento.

– A questão é que quando um monumento é imposto para homenagear um período da nossa história onde os indígenas foram escravizados, obrigados a se tornarem cristãos, e trabalharem exaustivamente para a coroa portuguesa como em guerras e obras públicas, eu acredito que isso tenha que ser questionado no sentido da gente parar para refletir: “quais informações essa estátua está me trazendo?” - destacou Vanessa, lembrando que “a homenagem feita à catequese imposta aos indígenas é extremamente problemática, representando imposição colonizadora e uma submissão irreal dos indígenas de São Pedro da Aldeia. E isso não é questionado, mas colocado como algo importante e benéfico para a nossa história”.

O questionamento à obra aldeense não é um caso isolado. Nos últimos anos, em todo o mundo, vários monumentos históricos passaram a ser alvos de manifestos contrários. Desde 2020, por exemplo, várias estátuas em homenagem a Cristóvão Colombo foram derrubadas em todo o mundo em apoio aos indígenas escravizados pelo colonizador. No Brasil, obras em homenagem ao bandeirante e escravocrata Manuel Borba Gato também foram alvo de protestos, e algumas até derrubadas.

– Até o momento há muito incômodo com a obra aldeense. Grande parte das pessoas já passaram por ali e se sentiram incomodadas com a posição de submissão dos indígenas, mas isso não é debatido. A retirada ou não desse monumento cabe apenas à população, assim como deveria ter sido feito no momento de sua imposição ao cenário da cidade. Apenas por solicitação vindas através da sociedade que se chegará a esse pedido ao atual governo da cidade - explicou Vanessa, lembrando que “um monumento é feito para marcar um acontecimento, tornar aquilo presente na memória de um grupo, então por que não uma homenagem à pesca artesanal, aos povos originários, a alguma representante quilombola que lutou pela terra como Rosa Geralda?”

A historiadora pontuou ainda que existe, em toda a região, “um processo de apagamento intenso e contínuo dos povos originários e quilombolas”.

– É importante que haja investimento na educação patrimonial numa perspectiva decolonial. Não só pra que as pessoas conheçam suas histórias e se conectem com seu território, mas como uma reparação histórica negra e indígena e também uma luta antirracista e contra o genocídio desses povos.


INDÍGENAS COMO MEROS OBJETOS DO PROCESSO DE CONQUISTA

Pesquisadora sobre a história da presença indígena em São Pedro da Aldeia e uma das palestrantes na II Semana Decolonial do Patrimônio de São Pedro da Aldeia, Silene Orlando Ribeiro contou à Folha que o território que veio a se tornar São Pedro da Aldeia foi ocupado por populares paleoindígenas ou sambaquieiras há pelo menos cinco mil anos.

– Quando os europeus começaram o processo de invasão e conquista do território que deu origem ao Rio de Janeiro, os Tupinambá, indígenas do tronco linguístico Tupi, já habitavam a região há pelo menos dois mil anos. Então, esse "vazio demográfico" dado pela narrativa histórica oficial é um equívoco. A ocupação do território que se tornou São Pedro da Aldeia foi fruto de um processo bélico e violento contra as populações indígenas da região. A fundação da Aldeia de São Pedro de Cabo Frio faz parte das estratégias lusas de desterritorializar, catequizar e inserir os indígenas na cultura europeia. No entanto, os indígenas deram outros significados ao aldeamento - contou.

Especificamente sobre a escultura instalada na área central de São Pedro da Aldeia, ela explicou que monumentos são construídos a partir de determinadas visões da história e concepções hegemônicas.  

– Ou seja, um momento nunca é só um monumento. Ele quer estabelecer uma memória, consolidar uma ideia que é aquela abraçada pela elite. Os indígenas são representados, ao longo da história do Brasil, como rudes, selvagens, violentos, ingênuos, submissos etc. E também como a expressão do atraso. Isso faz parte do pensamento colonial que ainda atua no século XXI. Estamos falando de séculos de violência, genocídio, epistemicidio e invisibilidade relacionados aos povos originários.

Segundo a pesquisadora, no passado os indígenas foram obstáculos no processo de conquista e colonização do território que veio a se tornar o Brasil. A depopulação indígena, de acordo com ela, “é resultado das guerras coloniais, trabalho compulsório e escravidão indígenas, das diasporas e expropriação fundiária que aconteceram nos três primeiros séculos de contato”.

– Ocorreram resistências e lutas indígenas no período colonial e imperial contra o processo de colonização e todos os seus efeitos. Mas, hoje, há um movimento indígena organizado no Brasil, e as dinâmicas sociais e lutas do tempo presente têm ressignificado monumentos históricos como o de São Pedro da Aldeia. Aquele monumento tem como fio condutor uma narrativa histórica do processo de formação da sociedade brasileira baseada no eurocentrismo, na idealização dos indígenas como meros objetos do processo de conquista lusitana. Mas as pesquisas acadêmicas desenvolvidas desde os anos 1980 vem desconstruindo essa ideia.

Ela também afirmou que ainda hoje existe um movimento de invisibilização dos povos indígenas no processo de formação do Brasil.

 – E essa questão pode ser observada em escala local e global. As narrativas tradicionais e hegemônicas produzidas desde a segunda metade do século XIX,  período de formação do Estado no Brasil,  sobre a História do Brasil, foram construídas apagando e/ou encobrindo as presenças indígenas. O projeto de poder forjado pelas elites brasileiras foi o de um Brasil sem indígenas. No entanto, os povos originários sempre estiveram, e continuam aqui neste território - explicou.