quarta, 01 de maio de 2024
quarta, 01 de maio de 2024
Cabo Frio
27°C
Park Lagos Super banner
Park Lagos beer fest
PROTESTOS ANTIRRACISTAS

Historiadores questionam nome da praia de José Gonçalves, em Búzios

Local é batizado com nome de traficante de escravos, como o que teve estátua derrubada na Inglaterra neste domingo

08 junho 2020 - 22h09Por Rodrigo Branco

Uma das praias mais conhecidas e visitadas de Armação dos Búzios, José Gonçalves foi batizada com o nome do português que foi um dos maiores traficantes de escravos do Brasil, no século 19. A homenagem foi questionada nas redes sociais neste domingo (7), após mais um dia de atos contra o racismo pelo mundo, por causa da morte de George Floyd por um policial branco, nos Estados Unidos, no fim de maio. Em Bristol, na Inglaterra, manifestantes antirracistas derrubaram a estátua de Edward Colston, um homem que também negociava o transporte de negros africanos escravizados para as Américas. A atitude dos ingleses provocou um paralelo com o caso buziano na internet.

A Folha ouviu historiadores da região para falar do assunto. Os estudiosos, em sua maioria, defendem a mudança do nome no paradisíaco recanto buziano. O professor José Francisco de Moura, o Professor Chicão, levantou a questão no blog 'História, Música e Sociedade', que mantém há vários anos. Segundo ele, estima-se que Gonçalves trouxe em torno de 36 mil negros escravizados para o Brasil naquele período, inclusive após a proibição do Tráfico Negreiro, em 1850. A desobediência levou os ingleses a atacarem o porto de Cabo Frio, durante uma invasão pela Boca da Barra, contra a esquadra de José Gonçalves. Professor Chicão criticou duramente o fato de uma praia local ter o nome de um traficante de escravos.

– É um absurdo que, nessa época de protestos mundiais contra o racismo, nós tenhamos uma praia com o nome desse indivíduo, assim como temos outros que dão nomes a alguns monumentos da cidade e que foram pessoas altamente questionáveis. Mas este é o símbolo maior – argumentou.

A historiadora Andréia Fernandes, do Coletivo Griot Pesquisa, difusão e memória em tradições afro, relata que se emocionou ao assistir o ato dos manifestantes ingleses. A professora destacou o aspecto simbólico da derrubada da estátua na Europa e ressaltou que a História do Brasil é contada sob a ótica dos ‘vencedores’, no caso, os homens brancos.

– Na nossa realidade, acho perfeito [mudar de nome]. Algumas pessoas podem falar que agora que fomos pensar nisso. Na verdade, são tantos incômodos que alguma coisa pode passar batido. São tantas outras lutas, que nessas consideradas menores, a gente acaba não atuando em todas as áreas. A primeira coisa que eu pensei é que a gente precisa rever nossas práticas, reler a nossa história, fazer realmente uma viagem de volta no pensamento, no entendimento. E essas questões são fundamentais, esses símbolos que estão aí, até hoje esfregando na nossa cara o quanto ainda somos uma sociedade racista, excludente e com vestígios escravocratas – comentou a historiadora.

O historiador e professor Luiz Guilherme Scaldaferri discorda de uma hipotética mudança de nome da praia buziana. O estudioso defende que a tese de que uma das funções da História é a lembrança de fatos negativos para que eles não se repitam. Ele citou como exemplo a existência de locais como o Cais do Valongo, no Rio, e do Museu do Holocausto, para defender a sua opinião, e aponta que há 'silêncio' sobre a história indígena, como exemplo de um possível resultado do apagamento dos vestígios da escravidão.

– Para José Gonçalves, por exemplo, acho ainda pior porque as comunidades quilombolas de Búzios têm uma memória com aquele lugar, e mudar o nome pode ser prejudicial a esta memória que legitima a luta daquelas comunidades. Aqui na região, tivemos um exemplo desta política. Tínhamos uma escola estadual em Cabo Frio chamada “31 de Março”, que passou a se chamar Renato Azevedo. Perdeu -se a oportunidade de discutir com a comunidade escolar o porquê de a escola ter sido criada para homenagear a ditadura militar e quem propunha tal homenagem – alega.

Estátua de traficante de escravos inglês foi derrubada neste fim de semana

Já o professor de História e Filosofia Moisés de Oliveira considera ser ‘válida’ uma mudança de nome da praia. Ele discorda do colega sobre a manutenção de ‘memórias ruins’ como forma de questionar o passado. Moisés deu como exemplo para o raciocínio o protesto em Bristol, neste fim de semana. 

– O primeiro-ministro inglês foi contrário ao ato da derrubada, enquanto vários políticos e artistas o louvaram. Inclui-se aí o prefeito da cidade. Haverá outras diversificadas  formas de manter a história viva. Livros, aulas, documentários, sem contar na questão da oralidade, pouco apreciada pela maioria dos historiadores. A história deve ser contada e analisada de forma independente e livre, sem amarras, sejam elas quais forem: ideológica, político-partidária, religiosa. A estátua era uma representação ‘maligna’ no sentido e no entendimento que reportava aquela sociedade à morte, à exploração, ao domínio do corpo, à coisa imoral. E isto deve ser combatido e exterminado do mundo. A ideologia nunca morre, seja ela ‘boa’ ou ‘ruim’. Neste caso, aquele monumento era uma lembrança do mal, e aí deve ser destruído.

Em 2016, foi lançado o livro da historiadora Nilma Teixeira Aciolli sobre o traficante português de escravos (‘José Gonçalves da Silva à nação brasileira: o tráfico ilegal de escravos no antigo Cabo Frio’). Na obra, a autora traz a biografia de Gonçalves e detalha como ele fez fortuna com o comércio ilegal. À época, Nilma negou se tratar de uma homenagem e, sim, a ‘perpetuação da condenação’ de Gonçalves, como disse à imprensa. 

Apesar das críticas feitas nas redes sociais, não há qualquer iniciativa conhecida no sentido de mudar o nome da Praia de José Gonçalves, no momento.