terça, 29 de abril de 2025
terça, 29 de abril de 2025
Cabo Frio
24°C
Magnauto
Magnauto site
PROTESTOS ANTIRRACISTAS

Historiadores questionam nome da praia de José Gonçalves, em Búzios

Local é batizado com nome de traficante de escravos, como o que teve estátua derrubada na Inglaterra neste domingo

08 junho 2020 - 22h09Por Rodrigo Branco

Uma das praias mais conhecidas e visitadas de Armação dos Búzios, José Gonçalves foi batizada com o nome do português que foi um dos maiores traficantes de escravos do Brasil, no século 19. A homenagem foi questionada nas redes sociais neste domingo (7), após mais um dia de atos contra o racismo pelo mundo, por causa da morte de George Floyd por um policial branco, nos Estados Unidos, no fim de maio. Em Bristol, na Inglaterra, manifestantes antirracistas derrubaram a estátua de Edward Colston, um homem que também negociava o transporte de negros africanos escravizados para as Américas. A atitude dos ingleses provocou um paralelo com o caso buziano na internet.

A Folha ouviu historiadores da região para falar do assunto. Os estudiosos, em sua maioria, defendem a mudança do nome no paradisíaco recanto buziano. O professor José Francisco de Moura, o Professor Chicão, levantou a questão no blog 'História, Música e Sociedade', que mantém há vários anos. Segundo ele, estima-se que Gonçalves trouxe em torno de 36 mil negros escravizados para o Brasil naquele período, inclusive após a proibição do Tráfico Negreiro, em 1850. A desobediência levou os ingleses a atacarem o porto de Cabo Frio, durante uma invasão pela Boca da Barra, contra a esquadra de José Gonçalves. Professor Chicão criticou duramente o fato de uma praia local ter o nome de um traficante de escravos.

– É um absurdo que, nessa época de protestos mundiais contra o racismo, nós tenhamos uma praia com o nome desse indivíduo, assim como temos outros que dão nomes a alguns monumentos da cidade e que foram pessoas altamente questionáveis. Mas este é o símbolo maior – argumentou.

A historiadora Andréia Fernandes, do Coletivo Griot Pesquisa, difusão e memória em tradições afro, relata que se emocionou ao assistir o ato dos manifestantes ingleses. A professora destacou o aspecto simbólico da derrubada da estátua na Europa e ressaltou que a História do Brasil é contada sob a ótica dos ‘vencedores’, no caso, os homens brancos.

– Na nossa realidade, acho perfeito [mudar de nome]. Algumas pessoas podem falar que agora que fomos pensar nisso. Na verdade, são tantos incômodos que alguma coisa pode passar batido. São tantas outras lutas, que nessas consideradas menores, a gente acaba não atuando em todas as áreas. A primeira coisa que eu pensei é que a gente precisa rever nossas práticas, reler a nossa história, fazer realmente uma viagem de volta no pensamento, no entendimento. E essas questões são fundamentais, esses símbolos que estão aí, até hoje esfregando na nossa cara o quanto ainda somos uma sociedade racista, excludente e com vestígios escravocratas – comentou a historiadora.

O historiador e professor Luiz Guilherme Scaldaferri discorda de uma hipotética mudança de nome da praia buziana. O estudioso defende que a tese de que uma das funções da História é a lembrança de fatos negativos para que eles não se repitam. Ele citou como exemplo a existência de locais como o Cais do Valongo, no Rio, e do Museu do Holocausto, para defender a sua opinião, e aponta que há 'silêncio' sobre a história indígena, como exemplo de um possível resultado do apagamento dos vestígios da escravidão.

– Para José Gonçalves, por exemplo, acho ainda pior porque as comunidades quilombolas de Búzios têm uma memória com aquele lugar, e mudar o nome pode ser prejudicial a esta memória que legitima a luta daquelas comunidades. Aqui na região, tivemos um exemplo desta política. Tínhamos uma escola estadual em Cabo Frio chamada “31 de Março”, que passou a se chamar Renato Azevedo. Perdeu -se a oportunidade de discutir com a comunidade escolar o porquê de a escola ter sido criada para homenagear a ditadura militar e quem propunha tal homenagem – alega.

Estátua de traficante de escravos inglês foi derrubada neste fim de semana

Já o professor de História e Filosofia Moisés de Oliveira considera ser ‘válida’ uma mudança de nome da praia. Ele discorda do colega sobre a manutenção de ‘memórias ruins’ como forma de questionar o passado. Moisés deu como exemplo para o raciocínio o protesto em Bristol, neste fim de semana. 

– O primeiro-ministro inglês foi contrário ao ato da derrubada, enquanto vários políticos e artistas o louvaram. Inclui-se aí o prefeito da cidade. Haverá outras diversificadas  formas de manter a história viva. Livros, aulas, documentários, sem contar na questão da oralidade, pouco apreciada pela maioria dos historiadores. A história deve ser contada e analisada de forma independente e livre, sem amarras, sejam elas quais forem: ideológica, político-partidária, religiosa. A estátua era uma representação ‘maligna’ no sentido e no entendimento que reportava aquela sociedade à morte, à exploração, ao domínio do corpo, à coisa imoral. E isto deve ser combatido e exterminado do mundo. A ideologia nunca morre, seja ela ‘boa’ ou ‘ruim’. Neste caso, aquele monumento era uma lembrança do mal, e aí deve ser destruído.

Em 2016, foi lançado o livro da historiadora Nilma Teixeira Aciolli sobre o traficante português de escravos (‘José Gonçalves da Silva à nação brasileira: o tráfico ilegal de escravos no antigo Cabo Frio’). Na obra, a autora traz a biografia de Gonçalves e detalha como ele fez fortuna com o comércio ilegal. À época, Nilma negou se tratar de uma homenagem e, sim, a ‘perpetuação da condenação’ de Gonçalves, como disse à imprensa. 

Apesar das críticas feitas nas redes sociais, não há qualquer iniciativa conhecida no sentido de mudar o nome da Praia de José Gonçalves, no momento.

Leia Também

Editora cabo-friense, Sophia expõe obras em feira de livro de Belo Horizonte
Cultura

Editora cabo-friense, Sophia expõe obras em feira de livro de Belo Horizonte

RESISTÊNCIA

Casa de Referência Inês Etienne Romeu segue sob risco de despejo em Cabo Frio

Mesmo com reintegração suspensa no último dia 18, integrantes do Movimento Olga Benário permanecem em vigília; espaço acolhe mulheres vítimas de violência
Luto | Rogério Zera: um artista sonhador e inquieto de coração aldeense
Geral

Luto | Rogério Zera: um artista sonhador e inquieto de coração aldeense

Encontro musical nesta quarta (23) celebra o Dia de São Jorge na Praia do Siqueira, em Cabo Frio
Geral

Encontro musical nesta quarta (23) celebra o Dia de São Jorge na Praia do Siqueira, em Cabo Frio