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CARAVANA CAIÇARA

Filme sobre naufrágio do Changri-lá estreia em Cabo Frio após 22 anos de produção

Cineasta Flávio Cândido detalha a mistura de ficção e realidade para narrar o ataque de 1943; exibições gratuitas em novembro iniciam novo ciclo de difusão da cultura caiçara na Região dos Lagos

11 novembro 2025 - 11h06Por Redação
Filme sobre naufrágio do Changri-lá estreia em Cabo Frio após 22 anos de produção

Pela primeira vez o filme que conta a história do naufrágio do barco pesqueiro Changri-lá será exibido em Cabo Frio. Ele foi afundado pelo submarino alemão U-199, em julho de 1943, durante a Segunda Guerra, no mar de Arraial do Cabo, que na época ainda era distrito de Cabo Frio. Dez pescadores cabistas morreram no ataque. A pré-estreia de “O Changri-lá Ainda Navega!” acontecerá dentro do projeto Caravana Caiçara, com exibições gratuitas e rodas de conversa. No próximo dia 14 de novembro, às 19h, a sessão será no pier da Praia do Siqueira, sede da Colônia Z-4, com a presença do cineasta e roteirista do filme, Flávio Cândido.

Em conversa com a Folha, Flávio expressou a emoção de finalmente poder levar a obra ao público local, mesmo ainda antes do lançamento oficial.

– O filme ainda não foi lançado: está em processo de pré-estreias para medirmos suas potencialidades para o mercado exibidor (cinemas e streaming). As cidades que já assistiram foram Arraial do Cabo, Niterói, Rio das Flores e Saquarema. Depois de Cabo Frio iremos exibi-lo em Araruama e Niterói mais uma vez, em Juiz de Fora, Rio de Janeiro e, provavelmente, encerraremos esse período de pré-estreias em Belo Horizonte. Mas exibir um filme em pré-estreia é sempre uma emoção e um mergulho no inesperado, sobre a reação do público, tanto de jovens quanto de adultos. Em Arraial do Cabo o retorno foi muito bom. Vamos ver como as plateias em Cabo Frio irão se comportar. Acho que iremos bem em ambos os casos - comentou Flávio.

Toda essa expectativa tem um motivo: o filme demorou mais de 20 anos para ficar pronto. A produção, que se estendeu por mais de duas décadas, precisou se adaptar e se tornou uma mistura de ficção com realidade.

– Como foram 22 anos de produção, resolvi colocar personagens de ficção que se misturam perfeitamente à realidade mostrada na tela. Esse casal projeta uma metáfora de uma história romântica e dolorosa real. O cineasta Sebastian vem do Paraná para contar a história do Changri-lá e da cultura caiçara na região. Aqui conhece Letícia, uma pesquisadora do IEAPM (Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira), e se envolve de corpo e alma. Foi uma maneira de narrar tantos momentos vividos pelos descendentes e pela produção, sem cair em uma datação de filme de arquivo. Acho que consegui desenvolver bem nesse aspecto. As reações têm sido muito positivas, principalmente por parte do público feminino que, de uma maneira ou de outra, se identifica com a Letícia. O desafio maior, na verdade, foi manter vivo na minha mente e na minha alma o interesse em documentar essa luta. Fiz isso por 22 anos. Não foi fácil - revelou.

O trabalho, no entanto, não foi solitário. Segundo Flávio, a participação da comunidade de Arraial do Cabo foi fundamental.

– Paulo Silva (filho e um dos pescadores mortos no ataque ao barco pesqueiro) foi o principal artífice da luta por justiça e por reparação. Infelizmente, ele morreu de Covid, mas viu, pelo menos, o documentário “A Derrota do Changri-lá”, em 2015. Aos poucos, ele foi introduzindo minha presença junto à "Família Changri-lá" e ganhei a confiança de todos, que se abriram inteiramente aos meus intentos de cineasta. Só tenho a agradecer. Mas uma produção, como “O Changri-lá Ainda Navega”, pelo tempo que demorou, sempre corre riscos. A mãe de Paulo, que foi a última viúva a morrer, e que poderia dar um depoimento, estava tão doente que não pôde conversar a respeito. Aí, reconfigurei aquele personagem em forma de ficção e para uma adaptação de época. Acho que deu certo. E este não é um filme qualquer. Tem muitas camadas de compreensão. É um documentário, é um filme híbrido com pitadas ficcionais (docfic), é um drama histórico, é um filme que trata da cultura caiçara e é também um filme de meta-cinema. E é um filme de uma vida, a minha, por 24 anos - explicou.

Mas, para criar o roteiro, o cineasta precisou se desdobrar em cima de pesquisas que vinham sendo feitas pelo historiador Elísio Gomes Filho. Essas pesquisas também serviram como base para um recente desfecho judicial, no Tribunal Marítimo, a favor das famílias dos pescadores. À Folha, Elísio contou porque decidiu investigar a história do naufrágio, que foi arquivada um ano após o ataque feito pelo submarino alemão.

– O fio da meada foi puxado quando eu descobri, através do livro de jurisprudência do Tribunal Marítimo, que o processo do Changri-la foi arquivado em 1944. Até então não se sabia qual era o motivo de ele ter sumido no mar. Tinha a hipótese de ter sido vítima de um temporal ou de ação de inimigo. Ele sumiu no mar de Arraial do Cabo em julho de 1943 e no ano seguinte o caso foi arquivado. Examinando os relatórios dos tripulantes alemães que sobreviveram ao ataque (feitos por forças aéreas americanas e brasileiras em cima do submarino U-199, em julho de 1943), eu vi que autoridades norte-americanas afirmaram que no mês de julho tinham afundado um barco de carga a vela. Aí liguei uma coisa com a outra. Na época eu era diretor do Museu Histórico Marítimo, um museu que eu fundei sobre naufrágios. Peguei o papel timbrado do museu e enviei um ofício para a Procuradoria Especial da Marinha pedindo a reabertura do processo, e apresentei as provas que eles não tinham, de que esse submarino alemão U-199 atuou na costa de Arraial do Cabo em julho de 1943, e atacou o Changri-la a tiros de canhão - revelou.

Com base nos documentos apresentados pelo pesquisador, somente 58 anos depois do naufrágio (em 2001), o Tribunal Marítimo reabriu o processo e reconheceu o ataque do submarino ao barco pesqueiro cabista. Em 2021 o Supremo Tribunal Federal (STF) acolheu o recurso de familiares de um dos pescadores mortos. Eles pretendiam que a República Federal da Alemanha os indenizasse pelo ataque letal ao barco pesqueiro. Por maioria, o Plenário fixou a tese de que Estados estrangeiros que pratiquem atos em violação aos direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição no Brasil e podem responder judicialmente por eles.

Em maio do ano passado uma nova audiência aconteceu no Fórum do Rio de Janeiro, e o historiador cabo-friense foi convidado a prestar depoimento. Ele foi a principal testemunha no processo que pede ao governo alemão indenização por reparação pelos crimes de guerra cometidos contra os 10 pescadores que morreram na ocasião.

– Baseado nas provas documentais que eu apresentei, o processo foi reaberto no Tribunal Marítimo, houve outro julgamento e, enfim, o Changri-la foi colocado no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra como um dos barcos brasileiros que foi afundado por atos de guerra. Então, a gente conseguiu essas duas vitórias: um novo acordo foi editado, mostrando qual a verdadeira causa do desaparecimento do Changri-la, e a justiça foi feita aos dez homens que estavam no pesqueiro na ocasião - contou o pesquisador.

Elísio disse ainda que a reparação moral existiu quando a Marinha colocou o nome dos tripulantes e do barco no Monumento da Segunda Guerra. Já a questão material, ele contou que alguns membros, no início, receberam a pensão de ex-combatente, mas não conseguiram mantê-la. Depois, partiram para um processo contra o governo federal que não foi vitorioso. Em relação à Alemanha, o historiador lembrou que o pedido de indenização ainda está em andamento.

– Eu acredito que quem assistir ao filme vai levar para casa muitas informações interessantes sobre o evento que é desconhecido da maior parte da nação brasileira. Foi o primeiro ataque a um barco de pesca efetuado por um submarino alemão e que matou dez pescadores. É uma história triste porque deixou viúvas, filhos e órfãos sem condições de manter suas vidas com dignidade - revelou Elísio.

O Caravana Caiçara Ano 2, premiado através da Lei Aldir Blanc e selecionado pela SececRJ em 2025 com nota máxima, chega a Cabo Frio com várias atividades gratuitas no Museu de Arte Religiosa e Tradicional (MART), na Escola Estadual Praia do Siqueira e no Pier da Praia do Siqueira, sede da Colônia de Pescadores Z-4, que fica à beira da lagoa. As atividades ocorrem de 1º a 17 de novembro com exibição de filmes, exposição iconográfica Caiçaras, oficinas de graffiti, fotografia, pintura em aquarela e rodas de conversa sobre artes plásticas e memorialismo. Para participar, é preciso fazer inscrição prévia pelo Instagram do projeto (Caravana Caiçara), em formulário próprio, ou pelo e-mail [email protected].