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Especial: Os Guris e a Vida no Crime

Pesquisa identifica perfil de jovens infratores em Cabo Frio: tráfico é infração mais cometida

13 julho 2019 - 09h24
Especial: Os Guris e a Vida no Crime

RODRIGO CABRAL

‘Chega estampado, manchete, retrato. Com venda nos olhos, legenda e as iniciais”. O eu lírico da canção ‘O Meu Guri’, lançada por Chico Buarque em 1981, descreve com ingenuidade a imersão do filho no crime: “O guri no mato, acho que tá rindo. Acho que tá lindo de papo pro ar. Desde o começo, eu não disse, seu moço. Ele disse que chegava lá”.

Em Cabo Frio, quase todos os dias, lá estão eles: nas manchetes, nas notícias policiais, nas estatísticas de uma cidade que tem na violência um sintoma de seu crescimento – aqui, esses guris estão majoritariamente no tráfico de drogas e são moradores de bairros periféricos. É o que mostra levantamento de dados sobre o perfil de 122 jovens acompanhados em regime de liberdade assistida, desde 2015, pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) do município: o tráfico é o principal tipo de infração cometida (76%), seguido por infrações análogas a crimes de homicídio e estupro (13%) e furto e receptação (11%).

A pesquisa foi realizada pelos psicanalistas Nathan Barbosa da Silva, pós-graduado em teoria psicanalítica e coordenador do CREAS, e José Maurício Loures, mestre em Psicanálise, como trabalho final da especialização em Teoria Psicanalística e Prática Clínico-Institucional na Universidade Veiga de Almeida (UVA).

Como o tráfico aparece na vida desses jovens? Nathan Barbosa, que é coordenador do CREAS, observa que há a convergência de alguns fenômenos: de um lado, a ausência do estado nos bairros periféricos e a ineficiência de políticas públicas para as classes sociais menos abastardas; de outro, a busca natural dos adolescentes por identificação e a vontade e sentir-se participante de grupos.

– Na conclusão do trabalho, nós esbarramos nessa questão, que é o fato de o adolescente precisar ter algum discurso para participar de algum grupo. O tráfico de drogas é um discurso que permeia a rotina desse jovem. E, a partir do momento em que ele tem contato com outro que já está na rua traficando ou com um maior de idade que também está no crime, ocorre o risco dessas identificações pouco saudáveis. Ou seja, se o estado não tem como possibilitar uma identificação saudável, vai restar a que existe ali à pronta entrega: o tráfico de drogas.

Na esteira da falta de oportunidades, a necessidade de ganhar dinheiro, principalmente quando se está à beira da maioridade, também é a pólvora que faz explodir os números do tráfico entre os jovens.

– Um adolescente que tem 17 anos, quase completando a maioridade, se vê cada vez mais imbuído do discurso capitalista. Ele vê pessoas conseguindo comprar coisas das quais também se sente convocado e necessitado de comprar. E ainda não está na idade de trabalhar formalmente. O projeto Jovem Aprendiz, que é a concessão que o estado faz para permitir que o adolescente trabalhe, tem recorte social. Normalmente são jovens de classe média, brancos, de escolas particulares, que não moram em periferia, aqueles conseguem as oportunidades.

Ele prossegue:

– Era comum, nesses atendimentos, ouvirmos jovens que nunca tinham pisado num shopping e, consequentemente, jamais ido ao cinema. Numa cidade como Cabo Frio, o cinema é o principal lugar para se consumir cultura, à exceção de outros peque- nos ciclos sociais. Esses adolescentes gostam da cultura mainstream, que é o cinema maior, mas não conseguem ir. Não por falta de dinheiro. Não vão justamente porque não é um local comum que frequentam. Nunca foram introduzidos ao cinema de um shopping, no centrão. Além de a necessidade de dinheiro ser forte a as políticas que orbitem o trabalho sejam precárias e segregacionistas, o próprio urbano contribui com que esses adolescentes fiquem às margens da sociedade. É complexo – analisa Nathan.

A pesquisa também faz o recorte etário dos jovens acompanhados pelo CREAS atualmente: 17 e 18 anos de idade (38,9%), 18 ou 19 (22,8%), 16 ou 17 (19,4%), 15 e 16 anos (9%), 14 e 15 (4,2%) e 19 e 20 anos (4,2%). Todos os que foram analisados pelo estudo cometeram crimes antes dos 18 anos. Por isso, podem ficar no sistema socioeducativo até os 21 anos. O levantamento identificou que nenhum destes adolescentes estava em idade compatível ao ano escolar. Apenas um tinha matrícula no Ensino Médio. E 20% encontravam-se no 6º ano do Ensino Fundamental, equivalente ao período educacional de crianças entre 11 e 12 anos.

Os pesquisadores também fizeram análise territorial dos locais da cidade que apresentam maiores incidência de jovens em conflito com a lei: o Jardim Esperança aparece na frente (16%), seguido por Unamar (14%), Jacaré (6,5%) e Jardim Caiçara, Manoel Corrêa, Monte Alegre e Praia do Siqueira (todos com 5,7%).

“Chegam lá sem pensar no amanhã”

Qual é seu ponto forte? Essa é uma das primeiras perguntas feitas a quem chega para cumprir a medida socioeducativa no CREAS, que funciona na Rua Alemanha, no Jardim Caiçara.

– Quando perguntamos isso, percebemos que um ponto comum é o fato de eles dificilmente conseguirem demarcar quais seus desejos a médio e longo prazo. Dificilmente conseguem vislumbrar uma faculdade ou mesmo o término da escolaridade para conseguir qualquer tipo de emprego. São os nossos profissionais capacitados os primeiros atores sociais a fazer com que este adolescente pense sobre isso. Fazem a reflexão: “Bom, vamos pensar: você precisa estudar para obter um bom emprego, um bom emprego vai servir para ganhar dinheiro e pode também proporcionar que faça você gostar de trabalhar”. Até então os adolescentes chegam lá sem pensar no amanhã. Essa é uma grande característica deles.

Há, no entanto, entre aqueles que foram presos, o medo de enfrentar novamente as agruras do sistema prisional:

– Eles demonstram não querer voltar para esses locais. Isso aparece em forma de medo. Demonstram que a situação que passaram lá é insalubre, de muita violência, onde não há quem possa defendê-los, seja de outros adolescentes, seja do estado. Há o medo de voltar. O sistema, hoje, trabalha em cima do temor.

Em outros momentos, no entanto, nem o temor, nem a completa desesperança: o discurso possível é o também de ser aquilo ainda não se conhece até então:

– Um jovem, depois de longo período de acom- panhamento, chegou para mim e disse que admirava a forma como eu falava, como me vestia, aquilo que eu representava ali dentro. Até então, ele não sabia o que faz um psicólogo. Descobriu ali parte do que o psicólogo faz. Chegou para mim, com a voz embargada, e disse que gostaria de ser como eu. Quando se dá a oportuni- dade ao adolescente de se identificar com alguém, de forma saudável, ele vai lá e se apega – conclui Nathan Barbosa.