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Ao encontro do poeta

Arraial chora a despedida de Ercilia Carriço

16 outubro 2019 - 21h53Por Rodrigo Cabral
Ao encontro do poeta

Sob o céu de Arraial do Cabo, enaltecido nos versos imortalizados por Victorino Carriço, pairou durante todo o dia de  ontem a dor e a desolação pela despedida de Ercilia Carriço Porto, filha do poeta. Dona Ercilia infartou de madrugada, enquanto dormia. Chegou ao Hospital Geral sem vida. Aos 72 anos, deixa o marido Wanderlei Porto, os filhos Wanderlei (Lelei), Fernanda e Leonora, os netos Júlia e Gabriel, o bisneto Pedro e uma cidade inteira órfã. 

– É um momento de muita dor, mas acho que é um momento para a gente agradecer a passagem da minha mãe por essa vida – disse a jornalista Fernanda Carriço, filha de Ercilia, durante o programa Amaury Valério, que chegou a sair do ar por alguns instantes devido à emoção do radialista ao dar a notícia.

Num discurso emocionado,  Fernanda expressou o sentimento de orgulho e gratidão por ser filha de Ercilia. 

– Ela era o amor da minha vida, mas eu tenho certeza que ela cumpriu muito bem o papel dela aqui, de mulher, filha de Victorino Carriço, filha de Zizi, cabista apaixonada, uma grande mulher. Ela teve o tempo dela. Ela descansou e vai deixar para sempre saudade. Mas é o momento que a gente tem para agradecer. A gente tem que sentir saudade e gratidão porque foi uma mulher do cacete. Ela foi uma grande mulher. Ercilia, descanse em paz! Vou carregar para sempre o orgulho de ser sua filha. Muito obrigado por tudo, mãe.

O município decretou luto oficial por três dias. O velório foi na Igreja Batista de Arraial do Cabo. Os louvores ‘Segura na Mão de Deus e ‘Mais Perto Quero Estar’, alguns dos preferidos de Ercilia, foram entoados por dezenas de pessoas – entre amigos, familiares e autoridades públicas – que lotaram o templo para prestar as últimas homenagens. Ercilia foi enterrada no cemitério Princesa Isabel, no Centro.

Brilhante. Espirituosa. Irreverente. Esses são os adjetivos que o músico Júnior Carriço, sobrinho de Ercilia, encontrou para defini-la.  

– Era um dínamo, uma força. A gente fica sem chão, mas orgulhoso dela e da comoção que sua partida provoca nas pessoas.

No bom humor, uma marca registrada. Meri Damaceno, memorialista e ex-secretária de Cultura de Cabo Frio, conseguia arrancar sorrisos à frente da Igreja ao realizar um pedido da amiga: distribuir balas azedas para quem estivesse no velório. 

– Foi um pedido dela em vida. Quando morresse, queria que distribuíssem balas azedinhas para que todo mundo ficasse falando: “ai, Ercilia!”, “tadinha de Ercilia”.

O temperamento era forte. E, vez ou outra, rendia discussões acaloradas. No Facebook, não fugia de uma polêmica. Mas Ercilia era isso e muito mais. Cozinheira de mão cheia, também fazia do afeto e dedicação ao próximo a receita para unir e agregar pessoas. Não é por acaso que, ao púlpito da Igreja em que foi realizado o velório, subiram representantes de três orientações religiosas: o padre Alex Renato, da Igreja Católica, e os pastores Carlos Henrique Soares, da Igreja Batista, e Luís Carlos Porto (irmão de Wanderlei Porto, marido de Ercilia), da Metodista.

– Quando eu a conheci, ela me segurou pelo braço e disse assim: ‘Estou triste com o senhor’. Eu perguntei: ‘Por quê?’. E ela: ‘Porque o senhor ainda não me aceitou no Facebook’ – contou o pastor Carlos Henrique durante discurso, fazendo mais uma vez lágrimas serem dividas com sorrisos. 
Ele continuou:

– Então, eu automaticamente aceitei o pedido de amizade e, a partir daí, ela sempre mandava recados para mim pelo Face. E a vida é assim: a gente tem oportunidade de conhecer pessoas, amar pessoas, algumas vêm na nossa vida e passam rapidamente. Enfim, nós queremos dizer a vocês, cantando, aquilo que eu acredito que ela já desfruta, que é o hino que a gente canta ‘mais perto quero estar, meu Deus, de ti’.  
O padre Alex atestou: é tempo de poesia no céu.

– Quando ouvi a notícia de que Ercilia tinha partido, eu falei: “Vai parar a cidade”. Não tem como olhar para dona Ercilia e não ver a história da cidade acontecendo. Eu tive o privilégio de ser amigo pessoal dela. Não tenho dúvida, e digo até com ousadia, que hoje o céu compôs uma poesia porque o poeta e a filha do poeta se encontraram. E, quando a criatura e o criador se encontram, só tem alegria. Pra gente fica o gosto amargo da saudade. E isso aí só o tempo de Deus para poder cicatrizar. Deixo aqui meus votos de sentimentos para a família e esse orgulho de ter sido amigo dela.

Ercilia assinou a coluna ‘A Filha do Poeta’ para a Folha dos Lagos entre os anos de 2014 e 2015. Em seus textos, contava causos, histórias típicas de Arraial e também memórias familiares. À redação, enviava os textos sempre em caixa alta, assim como escrevia nas redes sociais. A saudade que tinha por seu pai era um dos temas predominantes. A Folha reproduz abaixo desta matéria a coluna ‘Cheiro de Saudade’, publicada em 1º de agosto de 2015. Em outra coluna, sob o título ‘Saudade da Páscoa ao lado dos meus pais’, contou como era o feriado ao lado de Victorino e Zizi.“Me agarrava em papai porque achava que o Cristo morto tinha poderes e ia levantar e vir para perto de mim. Lá em casa não tinha tradição de Páscoa, de não comer carne. Minha mãe era evangélica e se tivesse carne na sexta comíamos não por abuso, mas por não crer. No domingo minha mãe fazia pudim de chocolate (muito bom) ou de coco – naquela época poucas pessoas davam ovo de páscoa. O meu primeiro só veio quando já era mocinha, mas não liguei muito pois não morro de amores por chocolate”, escreveu.

No dia 10 de novembro de 2015, Ercilia recebeu na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) a Medalha Tiradentes em caráter “post mortem” pela obra do pai. 

A história da Região dos Lagos passa pela poesia de Victorino Carriço. Político e poeta, Santinho, como era conhecido, é autor de 14 hinos, entre eles o de Cabo Frio e o de Arraial do Cabo. Ele escreveu três livros: “Mar e Amar’, “Vidas Mortas” e “Se Voltares”. A trilogia está guardada no departamento de obras raras da Biblioteca Municipal de Cabo Frio. 

– Ele lia muito. Mas só lia autores brasileiros. Os favoritos eram Atalício Fernandes e Olavo Bilac. E não lia só poesia. Lia até gibi, revista infantil, história de faroeste... Tinha uma visão privilegiada. Até na velhice enxergou bem de perto – disse Ercilia em entrevista à Folha publicada em 31 de julho de 2016.

Em postagem recente no Facebook, Ercilia republicou texto – de autor desconhecida – que dá a noção exata da vida que decidiu levar. 

“Quantos anos eu tenho? Não preciso de números para marcar, pois meus anseios alcançados, as lágrimas que derramei pelo caminho, ao ver meus sonhos destruídos… Valem muito mais que isso. Não importa se faço vinte, quarenta ou sessenta! O que importa é a idade que eu sinto. Tenho os anos de que preciso para viver livre e sem medos. Para seguir sem medo pelo caminho, pois levo comigo a experiência adquirida e a força de meus anseios.
Quantos anos tenho? Isso não importa a ninguém! Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e sinto”.

 

Um cheiro de saudade

 Na semana em que comemoramos o aniversário do meu pai, parece que ele fica mais presente em minha vida. No dia do aniversário dele, acordei feliz porque tive um sonho muito bom: sonhei que ele estava na praia em seu passeio de todos os dia enquanto eu estava junto dele. 

Quando ainda estava entre nós, depois do café da manhã, ele colocava em uma sacola miolo de pão e levava para as gaivotas e parece que elas esperavam por ele. Nesse sonho, dava comida para as gaivotas junto com ele e ríamos muito, foi muito legal, uma pena que foi só um sonho e acordei. 
Nesse mesmo dia, teve a reabertura da Casa da Poesia, a casa em que morávamos todos nós e que hoje homenageia a memória dele. Lá tem um acervo com mais de mil livros, um espaço muito bom e foi criada para que as pessoas tenham um lugar tranquilo para ler. Se quiser tomar um cafezinho para bater um papo com pessoas agradáveis e que partilhem o mesmo gosto literário que você, ali é o lugar ideal. 

Tem um espaço para a criançada, muito bom com livros de histórias, revistinhas infantis e as professoras levam os alunos para fazer pesquisa para as provas. 

O funcionamento é de segunda à sexta-feira, entre as 13h e 18h. A Casa da Poesia fica em um recanto muito agradável, encostada ao muro da igreja Nossa Senhora dos Remédios. Dobrando a esquina, poderá observar o marco histórico da Praia dos Anjos, onde as pessoas falam que ali é um lugar encantado. E é mesmo para nós, sempre foi. Mas para mim não é fácil ir lá, porque olho para a casa e como não tem mais ninguém da minha família morando lá, sinto um grande cheiro  da saudade. Até sábado que vem, se Deus quiser.

(*) Por Ercilia Carriço. Publicada em 1º de agosto de 2015 na Folha.