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MEMÓRIA

Álcalis: a gigante que mudou para sempre uma pacata vila de pescadores

Capítulo do livro 'Cabo Frio Revisitado', da Sophia Editora, relata processo de implantação da estatal, em Arraial

21 fevereiro 2021 - 10h00Por Rodrigo Branco

Na primeira metade dos anos 1940, uma pacata vila de pescadores no então distrito cabo-friense de Arraial do Cabo entrou no radar do governo de Getúlio Vargas (1930-1945) para a implantação de um projeto de industrialização nacional. É sobre o conturbado e difícil processo de instalação da Companhia Nacional de Álcalis que trata o décimo capítulo do livro ‘Cabo Frio Revisitado – a memória regional pelas trilhas do contemporâneo’, obra editada pela Sophia Editora (432 págs.), com artigos organizados pelo arquiteto e ilustrador Ivo Barreto.

Autor do texto, o professor universitário Walter Luiz Pereira abordou a trajetória da gigante estatal produtora de barrilha [insumo usado na fabricação de vidros], soda cáustica e cal entre o início do projeto, em 1943, ainda na Era Vargas, e 1964, ano do golpe que levou os militares ao poder. Walter relata que o começo do interesse em estudar a companhia surgiu em 2007, quando ex-funcionários da Álcalis, cujas atividades foram encerradas no ano anterior, se reuniram na universidade em que trabalhava com o ministro do Trabalho da época, Carlos Lupi, para tentar retomar o trabalho na companhia.

Foi então que Walter, que já se dedicava ao estudo da indústria salineira na região, com ênfase no século 19, resolveu mergulhar fundo no tema. A dedicação resultou em artigos acadêmicos publicados em instituições de prestígio, como a Fundação Getúlio Vargas.

– A partir daí, passei a ter contato com vários trabalhadores e ex-trabalhadores e comecei a montar um projeto. Na verdade, meu projeto de doutorado foi sobre a indústria salineira. Meu interesse de estudar a empresa não só passa pela Álcalis mas também passa pela industria salineira em Cabo Frio. Notadamente quando há o projeto original e posteriormente ao projeto original, quando a empresa começa a tomar forma, é também no mesmo contexto em que em Cabo Frio se instala uma produção salineira com uma tecnologia bem mais avançada, com a inauguração de uma nova planta da companhia Perynas e também da Refinaria Nacional do Sal – explica.

A proposta de Walter foi abordar os aspectos políticos, sociais e regionais relacionados à história da empresa, que deixou marcas profundas na região e, em particular, no município cabista, emancipado em 1985 e que tem no parque fabril abandonado na porta de entrada da cidade uma fantasmagórica lembrança dos tempos em que Cabo Frio e Arraial do Cabo estavam no mapa da indústria de base nacional, formando um tripé junto com a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda; e a Fábrica Nacional de Motores, em Duque de Caxias. 

Para isso, o escritor teve que vencer as dificuldades encontradas pela carência de referências e de bibliografia sobre o assunto.

– Fazer história de empresa no Brasil, notadamente de empresa privada, é muito complicado.  Para empresa pública você tem um universo documental maior, mas também é difícil. No caso da Álcalis, foi muito interessante porque eu pude partir de várias perspectivas distintas. Juntar a história de uma empresa estatal às histórias política, social e regional. Criou-se então para mim uma expectativa de estudo muito ampla, de uma base muito integrada de estudo que eu pude juntar o econômico, o social e o político. Todos esses campos de estudo estão presentes, de certa forma, no artigo publicado no livro porque eu remeto a todos eles.  Não só a questão da empresa, mas como funciona esse universo do trabalho dela e o que a Álcalis representou em termos regionais – relata.

Dificuldade de implantação e movimento migratório

Parque fabril abandonado hoje é fantasmagórica lembrança de quando a empresa estava na ativa (Foto : Ernesto Galiotto)

Em termos químicos, a barrilha é conhecida como carbonato de sódio, um sal branco e translúcido. Entretanto, a oferta abundante de água salgada na região esteve longe de ser um  facilitador para a operação da companhia. Além de entraves apontados por técnicos estrangeiros, como a temperatura da água, a produção do sal local não era considerada suficiente para a oferta de matéria-prima, o que obrigava a importação do produto do Nordeste, o que encarecia o processo.

Antes disso, a própria implantação da empresa foi complicada e durou mais de uma década, conforme explica Walter. Iniciado em 1943, o projeto só saiu de fato do papel no fim dos anos 1950. Ele foi entregue a um banco norte-americano que, ao fim da análise, se negou a financiá-lo. O investimento necessário foi conseguido junto a uma agência francesa, mas essa não foi a única atribulação. Salineiros nordestinos pleiteavam que a Álcalis fosse construída longe de Arraial. Nesse caso, os laços familiares foram decisivos para o estado do Rio ganhar a parada.

– Tinha a força política do [Ernâni do] Amaral Peixoto, genro de Vargas, que era interventor no Rio, e posteriormente assume postos importantes, e defendeu a posição do Rio, por ser próximo dos maiores mercados consumidores do país e efetivamente no caso da Álcalis, por ser uma região produtora de sal que poderia atender a demanda – explica o estudioso.

A produção dispendiosa afetou a competitividade da Álcalis. Walter explica que o preço da barrilha produzida na Região dos Lagos era maior do que o da concorrência. Com isso, os fabricantes de vidro para a indústria farmacêutica preferiam importar o produto. Como pano de fundo, havia a turbulência política nos anos 1960, com a renúncia de Janio Quadros e a deposição de João Goulart, que estimulava movimentos de trabalhadores para cobrar seus direitos e melhorias na empresa. 

As dificuldades econômicas ao longo dos anos desembocaram na privatização da empresa, no começo da década de 1990, no governo Collor. A companhia se arrastou até a falência, em 2006, deixando dívidas trabalhistas cobradas até hoje na Justiça. Noves fora a derrocada financeira, a trajetória de uma empresa nascida da aventura desenvolvimentista brasileira foi marcante para a formação do ‘Cabo’, apelido de Arraial, como é conhecido hoje.

– Para Arraial teve uma importância muito grande, no sentido de uma indústria transformadora que se estabelece numa colônia de pescadores, numa vila rústica. A parte final do artigo fala um pouco disso, de uma sociedade que vive da pesca e que está no entorno de uma grande indústria de base. Isso vai mudar muito a configuração desse distrito. Isso implica num fluxo de migrantes muito grande para Arraial e Cabo Frio, de nordestinos e de uma população que vem do Norte Fluminense, de Campos e Itaperuna, pelo fato dessa empresa oferecer condições de trabalho muito superiores às que os trabalhadores no estado do Rio tinham naquela época – finaliza o professor.