No segundo andar da cafeteria Zion Bike, no Braga, em Cabo Frio, os dedos do arquiteto Ivo Barreto deslizam para lá e para cá rentes ao vidro de alguns dos 14 quadros que ornam o ambiente, como se redesenhassem no ar o que está eternizado entre as molduras. São gestos que intencionam traduzir as composições, referências, inspirações e técnicas — xilografia, serigrafia, impressão digital, nanquim e aquarela — utilizadas nas representações de espaços como a Boca da Barra do Canal do Itajuru, a Praia do Forte, o Maracanã e a Casa da Flor, que fazem parte da exposição "Paisagens afetivas", cuja abertura oficial acontece neste sábado (4), a partir das 14h.
— Trabalho com uma ideia que, no campo do patrimônio, é chamada de referência cultural. Esses espaços são importantes porque são valorados por mim, por você, por outras pessoas. Embora eu tenha relação de afeto com todos os espaços, busco reconhecer neles quais são as referências que os tornam especiais e impactantes não só para mim, mas para todos que os frequentam — reflete Ivo, doutorando em arquitetura (Proarq/UFRJ), professor da Universidade Estácio de Sá, campus Cabo Frio, e colaborador da Folha dos Lagos.
As obras, ele conta entre um gole de café e outro, foram produzidas de 2010 a 2022. A ideia de reunir o acervo em uma exposição amadureceu aos poucos, a partir das experiências profissionais, viagens, mudanças, pesquisas e atentas observações nesses lugares tão capazes de causar deslumbramento. Mas foi a partir de 2015, quando fundou o Ateliê Belas Janelas ao lado da também arquiteta Natália Rossi, que a produção das obras ganhou fôlego e volume, sempre com assinatura artística voltada para a valorização da memória e do patrimônio.
— Ao longo dos anos, consolidando o acervo, me reconheci como autor, coisa que nunca havia imaginado. A partir do momento em que me reconheço como artista, foi questão de tempo para a exposição surgir. A maioria das pessoas me conhece poque fui gestor [no Iphan, Ivo foi superintendente estadual no Rio de Janeiro e, também, chefe do escritório técnico da Região dos Lagos] e fiz um bom trabalho. Orgulho-me disso. Mas assim é a vida. As pessoas estão em transformação, e estar perto da arte me aproximou de mim — explica.
Nos últimos anos, Ivo também organizou os livros "400 vezes Cabo Frio — memória e território em 400 imagens e centenas de olhares" (2016) e “Cabo Frio Revisitado — a memória regional pelas trilhas do contemporâneo” (2020)", este último lançado pela Sophia Editora. Flamenguista de carteirinha, enveredou, mais adiante, para os campos desta paixão: o futebol. Durante a pandemia, tempo de jogos silenciosos e sem a vibração do público, iniciou a coleção “Stadium Project”, que também faz parte da mostra “Paisagens afetivas”
— Abordo o futebol sob o ponto de vista das paisagens afetivas. Qual é a humanidade desse esporte? O professor Nestor Goulart Reis se refere ao Maracanã como a "monumentalidade da massa". Gosto muito desta abordagem. Afinal, quem vai ao estádio não vai apenas ver o jogo. Vai ver a torcida cantar. Vai cantar junto. É uma proposta de catarse. Naquele momento, os estádios não recebiam torcida. Através da arte, resolvi subverter essa possibilidade ao desenhar estádios icônicos do mundo, repletos de suas referências e torcedores.
Todos os quadros encontram-se disponíveis para aquisição em duas opções: artes originais de cada série (com marca d´água em alto relevo, numeradas e assinadas pelo autor); ou artes em versão pôster, mais acessíveis e em tamanhos variados. Além disso, está disponível uma incursão online em 3D pela mostra, através do link https://my.matterport.com/show/?m=wtiRMYuGwic. O mapeamento, feito em scaner tridimensional e realidade ampliada, foi executado pelo Acervo Caoroline Lorraine, um dos apoiadores oficiais da mostra, grupo que conta ainda com a Sophia Editora, Folha dos Lagos e Unitemper.
O Zion Bike fica na Av. Vereador Manoel Antunes 45, loja 3, e funciona de segunda a sábado, das 9h às 19h.
Cinco obras nas palavras de Ivo Barreto
O cerco do Arraial
"Parte das obras têm influência da arte naïf. É uma técnica que exige uma trilha diferente, muito mais da arquitetura, de volumes mais mínimos, insinuações parciais. É o caso desta obra, que aborda o cerco da tradicional pesca com vigia do Arraial do Cabo, na qual um pescador, que está no morro, segurando um lenço, sinaliza para que os outros lá embaixo, na canoa de boçarda, de um tronco só, façam o movimento de acordo com o tipo de cardume. E eles arrastam toneladas a partir desse movimento sincronizado, absolutamente humano e analógico. Acho que é um quadro muito importante. Aqui na região, nossos sambaquis comprovam que o homem já fazia a pesca há milhares de anos. Esses restos estão em elevações. E é numa elevação que o vigia sinaliza para os pescadores que estavam no mar. Ou seja, o quadro representa o hoje, mas com uma conexão muito grande com o passado. É o que o Paulo Barreto, sociólogo e amigo, chama de conhecimento de natureza profunda. Fiz esse desenho que originou a gravura para o doutorado do Paulo."
Brasil nº 10
"Nessa coleção, os quadros não levam o nome dos estádios. Não quis entregar o ouro. Embora eu lide com espaço e arquitetura, tentando trazer verossimilhança, tenho a liberdade de composição num primeiro momento. Várias outras referências passam a entrar na cena aqui: a Quinta da Boa Vista, o Museu Nacional, a Mangueira — que não apareceria, mas é trazida à cena —, e os morros cariocas ali atrás, que não necessariamente são morros que estão no entorno. A ideia é compor uma cena reconhecível, onde as pessoas consigam se projetar para aquela paisagem. Todo o arranjo humano num dia de jogo, de clássico, está ali: os acessos, a saída para o metrô, o acúmulo de gente perto da estátua do Bellini, que é ponto de encontro dos flamenguistas... Quem frequenta o Maracanã vai ver este quadro e escutar música. Este é o antigo Maracanã, porque é o que mora no meu coração."
Paisagem afetiva de São Luís
"Esta é a primeira paisagem afetiva que fiz, seguindo um pouco esse conceito. Eu trabalhei em Alcântara e morava em São Luís. Ia para São Luís duas ou três vezes por semana, sempre de barco. Aquela cena era o cartão de chegada: barcos saindo para pesca ou atracando — e eu chegando de barco no cais com o centro histórico se aproximando, às vezes enquanto a noite caía ou no fim de tarde, num pôr do sol muito bonito. É um espaço tocante. A composição da cena bebe um pouco dos meus últimos meses ali. Trago os barcos, as velas, elementos registrados nas obras de fotógrafos importantes, que fazem parte da cena urbana de São Luís.”
Suspensão em júbilo
"É a única obra da exposição que não tem abordagem tão literal. Tem composição com um pouco mais de abstração, remetendo ao período em que todas as cidades foram obrigadas a reduzir a circulação de carros e ônibus por causa da pandemia de coronavírus. Nesse momento, a natureza começa a se regenerar. Alguns animais aparecem em áreas que não apareciam mais. Espaços que estavam degradados começam a se regenerar. Fiz uma reflexão sobre o desajuste da paisagem. Coloco o mundo em suspensão. E fora da gaiola o passarinho canta. É o mundo em suspenso, enquanto a natureza está agradecendo um pouco por essa pausa.”
Paisagem afetiva de Cabo Frio
"Como a obra é feita em nanquim, tem riqueza de detalhes muito maior. Se reparar, é um corte de representatividade de todos os elementos que compõem aquele espaço: A Duna Boa Vista em primeiro plano com seus sítios arqueológicos, os vendedores da praia, os banhistas, os surfistas e os pescadores. Está tudo ali. E o que seria desse espaço sem essas pessoas?".