Especialistas em Direito afirmaram à Folha, esta semana, que a Prefeitura de Cabo Frio não pode impedir que motoristas de aplicativos de outros municípios atuem na cidade. O alerta surgiu após o prefeito Serginho Azevedo anunciar, nas redes sociais, que faria a proibição. A decisão gerou insatisfação entre passageiros e profissionais do transporte, motivando a realização de uma audiência pública na última segunda-feira (13), em frente à sede da Prefeitura.
Ao final do encontro, embora tenha recuado da decisão, Serginho determinou que os motoristas de aplicativos podem atuar normalmente, desde que o aplicativo esteja ligado e em corrida ativa, conforme as normas municipais de mobilidade. O prefeito também informou que vai estudar a criação de um aplicativo municipal para integrar motoristas de toda a região, com cadastro e QR Code de identificação, e lembrou que, nas viagens intermunicipais de táxi, o taxímetro deve permanecer ligado, conforme a regulamentação vigente.
À Folha, o advogado Luciano Régis, e o ex-deputado federal Bernardo Ariston, explicaram que nenhum município tem poder para impedir motoristas de aplicativos de outras cidades de atuar em seu território, mesmo com a criação de um aplicativo próprio.
Luciano explicou que em 2019 o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia declarado que qualquer proibição, ou restrição que impeça a atuação de motoristas de aplicativo, é inconstitucional. Por isso, segundo ele, o anúncio da proibição “viola os princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e do direito do consumidor”. Formado em Direito, Bernardo afirmou ainda que a decisão do órgão fixou tese de repercussão geral no sentido de que municípios podem fiscalizar, mas não proibir ou limitar o serviço de maneira discriminatória.
– Com base na lei 13.640/2018, que regulamentou o transporte por aplicativos no Brasil, as prefeituras podem organizar e fiscalizar a atividade através de uma lei municipal. Essa lei pode exigir cadastro, vistoria, pagamento de taxas, seguro, comprovação de antecedentes e integração de dados com as plataformas privadas. Tudo isso é legal e necessário. O que não se pode é criar reservas de mercado nem barreiras de domicílio. A lei não proíbe o serviço, e não exige autorização prévia do poder público para o motorista, mas permite que o município estabeleça suas próprias regras e tributações - explicou Bernardo.
Luciano afirmou à Folha que as regras municipais não podem restringir arbitrariamente ou proibir o serviço, “pois a competência para legislar sobre o tema é da União, com delegação às municipalidades para regulamentação, sempre respeitando os parâmetros federais e constitucionais”. Por isso, ele considera legal a exigência do prefeito de que os motoristas estejam com o aplicativo ligado e em corrida ativa dentro da cidade.
– Essa exigência está alinhada com o entendimento dos órgãos reguladores, como medida para distinguir entre motoristas que estão efetivamente prestando serviço e aqueles que apenas circulam sem corrida ativa. E isso pode ser fiscalizado pelo município para coibir transporte irregular ou clandestino – explicou Luciano. Bernardo Ariston reforçou que o motorista só é considerado em atividade quando o aplicativo está ligado e há uma corrida em andamento; “fora dessa condição, ele é apenas um condutor particular, não estando em efetivo exercício do transporte remunerado privado de passageiros”.
Sobre a exigência de manter o taxímetro ligado em viagens intermunicipais, Luciano explicou que a medida está prevista na legislação vigente. A Lei Estadual nº 8.867/2020, que regulamenta o serviço de táxi intermunicipal no estado do Rio de Janeiro, determina que os veículos “deverão estar com os seus taxímetros ligados nos trajetos de ida e vinda quando utilizados para outros municípios”.
A norma também estabelece que a operação intermunicipal deve ter origem no município de licenciamento e emplacamento do veículo como táxi, conforme o artigo 1º, parágrafo 2º, da própria lei. A exceção fica por conta de taxistas vinculados a cooperativas ou associações que mantenham contratos de agenciamento com empresas sediadas no município de origem. Neste caso, segundo a legislação, eles podem, excepcionalmente, iniciar viagens a partir de outro município. Nesses casos, é necessário que o passageiro solicite o serviço à central de operações da cooperativa ou associação, e que seja emitida uma guia de transporte com o itinerário, nome e CPF dos passageiros, número da ordem de serviço, nome e telefone da empresa contratante. Esses registros devem ser arquivados no sistema da cooperativa ou associação para fins de fiscalização.
– Por isso o município de Cabo Frio não tem o poder fiscalizatório de táxi de outros municípios. Isso cabe ao município de origem e ao Detro - explicou Luciano.
Enquanto a Lei nº 8.867/2020 regulamenta o uso do taxímetro em viagens dentro do estado do Rio de Janeiro, não há norma equivalente para trajetos entre estados. Isso porque a única lei federal que trata do assunto (nº 12.468/2011), diz apenas que “em municípios com mais de 50 mil habitantes é obrigatório o uso de taxímetro, verificado, a cada dois anos, pelo órgão metrológico competente, conforme legislação em vigor”.
Segundo Luciano, também existe uma diferença jurídica importante entre o transporte por táxi e o realizado por aplicativos.
– Táxis são serviços públicos regulamentados e autorizados municipalmente, com regras específicas para viagens intermunicipais e uso obrigatório do taxímetro. Já o transporte por aplicativo é privado, intermediado por plataforma digital, e regulamentado de forma mais flexível, mas sem necessidade de autorização municipal para cada motorista, respeitando a legislação federal e normas municipais aplicáveis.
Apesar da diferença jurídica entre as duas atividades, os dois especialistas disseram que o governo municipal pode aplicar multas e outras sanções administrativas por descumprimento das normas municipais de fiscalização do transporte, desde que essas regras estejam dentro dos limites legais, e respeitem a competência municipal. “A fiscalização está prevista e é função do município garantir a segurança e o ordenamento do serviço”, afirmou Luciano.
– Mas o município só pode aplicar multas e penalidades desde que exista lei municipal regulamentando o serviço. A fiscalização é local, mas o município só pode punir condutas que estejam previstas em norma municipal - completou Bernardo.
Para o advogado Luciano Regis, o tema demanda equilíbrio entre liberdade econômica, segurança pública e ordenamento urbano. Por isso, alega que a forma como o tema foi tratado pelo prefeito cabo-friense evidenciou a improvisação do Executivo Municipal.
– A tecnologia avança e o direito precisa acompanhar com normas claras, transparentes e respeitando os direitos dos consumidores e trabalhadores. Qualquer regulamentação deve respeitar o marco legal e as decisões do STF para evitar inovação legislativa que cause insegurança jurídica ou restrinja o acesso ao serviço.Também é relevante acompanhar iniciativas de integração regional para soluções conjuntas, como a proposta do aplicativo municipal de Cabo Frio, que pode ser uma forma de facilitar a fiscalização e regularização sem violar direitos. Lembrando: não existe um prefeito regional. Logo, o prefeito de Cabo Frio precisa buscar construir os caminhos em conjunto com os demais prefeitos. Ficou evidenciada a falta de planejamento dele. A conversa com os taxistas pareceu improvisada, e ele teve que recuar em muitos pontos por causa da pressão dos motoristas de aplicativo. Sem responsabilidade, sem planejamento e, principalmente, sem dialogar com a sociedade, jamais alcançaremos os avanços que a cidade precisa - pontuou Luciano.
A tentativa do governo cabo-friense em restringir a atuação de taxistas e motoristas de aplicativo de fora da cidade, não é nenhuma novidade. Segundo pesquisa feita pela Folha, há anos outras Prefeituras do Brasil tentam fazer o mesmo, mas segundo Luciano, todas as tentativas foram julgadas inconstitucionais pelo STF.
– A Justiça tem reafirmado que os municípios podem fiscalizar, mas não impedir a atuação desses motoristas.
Em 2019 o Supremo Tribunal Federal definiu que os municípios não podem contrariar a lei federal que regulamentou os serviços de motoristas particulares dos aplicativos Uber, Cabify e 99. A Corte também estabeleceu que qualquer proibição ou restrição aos aplicativos é inconstitucional. As decisões foram tomadas a partir do encerramento do julgamento sobre a legalidade dos serviços de aplicativos. Por unanimidade, o STF decidiu que os municípios podem fiscalizar o serviço, mas não podem proibir a circulação dos motoristas.