do a Prefeitura de Cabo Frio, acusada de enviar 12 pessoas em situação de rua para Linhares (ES) sem qualquer vínculo com a cidade capixaba, não é o único alvo de investigação pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). O órgão informou à Folha que, antes mesmo deste caso, a 3ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Cabo Frio já havia instaurado um procedimento para apurar a política municipal voltada às pessoas em situação de rua no município.
Desde fevereiro o governo cabo-friense vem sendo alvo de questionamentos por conta de posicionamentos públicos feitos pelo prefeito Serginho Azevedo, um deles durante uma audiência pública de ordenamento do bairro Braga. Na ocasião, o chefe do Executivo municipal chamou a atenção de quem costuma fazer caridade e ajudar pessoas em situação de rua com doação de esmola:
— Eu mesmo dei dinheiro várias vezes mas, gente, não façam mais isso. Não acomodem as pessoas nessa situação — disse Serginho, pedindo, em seguida, que igrejas e entidades se juntem à assistência social do governo para uma ação conjunta. O discurso arrancou aplausos, mas também protestos e repúdio de quem nem estava na audiência, como o padre Júlio Lancellotti, que compartilhou reportagem da Folha em suas redes sociais e escreveu: “Impressionante a cruzada de vários prefeitos pelo Brasil contra a população em situação de rua”.
Ao tomar conhecimento deste último caso, o MPRJ disse à Folha que “imediatamente iniciou diligências para apuração dos fatos”. Além da Prefeitura cabo-friense, disse que também foram oficiadas as secretarias de Assistência Social de Cabo Frio e Linhares, a Procuradoria-Geral do Município de Cabo Frio, a Casa de Passagem de Cabo Frio, o Ministério do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome, o Ministério Público do Trabalho, o Conselho Municipal de Assistência Social de Cabo Frio, a Câmara Municipal e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. As diligências seguem em andamento “para apuração completa dos fatos e responsabilização, se for o caso”.
Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) também se pronunciou. Disse que, através da Promotoria de Justiça de Linhares, acompanha “com atenção e sensibilidade” o caso envolvendo a chegada de pessoas em situação de rua ao município. Explicou que a atuação institucional está voltada para dois eixos principais: “o acolhimento digno e humanizado das pessoas envolvidas e a apuração das circunstâncias que levaram ao deslocamento do grupo”.
Disse ainda que, por se tratar de um episódio com origem em outro estado da federação, a apuração está sendo articulada com o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, além de outras instituições e autoridades locais, “para adoção das providências cabíveis e possíveis responsabilizações”, já que “a complexidade do caso exige cautela e cooperação entre os órgãos envolvidos”.
Delegado diz que não há contradições em depoimentos
O episódio aconteceu na noite do último dia 8 de abril. Um grupo em situação de rua deixou Cabo Frio em um micro-ônibus branco fretado pela prefeitura cabo-friense. Ao todo, 16 pessoas teriam embarcado: quatro foram deixadas em Campos dos Goytacazes, e as outras 12 seguiram até Linhares, no Espírito Santo. A viagem teria sido motivada por uma falsa promessa de emprego em fazendas de café. Ao chegar à cidade capixaba, o grupo teria sido deixado em uma rua sob outra falsa promessa: de que um fazendeiro enviaria transporte para buscá-los.
— Eles falaram “vai pra lá porque lá tem colheita de café. Já foram pessoas aqui de Cabo Frio pra lá que arrumaram R$ 20 mil em três meses”. Eu falei “tô em situação de rua, não tenho nada a perder, vou pra lá, então”. Mandaram a gente assinar um papel, e quem tá em situação de rua assina qualquer papel. Eu quero mudar de vida. Cheguei aqui e não era nada disso — revelou um homem identificado como Júlio César Freire.
Na última sexta (dia 11), seis dessas 12 pessoas retornaram para Cabo Frio em um ônibus também fretado pelo governo municipal. Quatro decidiram permanecer em Linhares, e outras duas foram encaminhadas de volta para seus estados de origem (Bahia e Minas Gerais).
Desde que as pessoas desembarcaram em Linhares, o caso segue sob investigação da delegacia capixaba. O trabalho vem sendo coordenado pelo delegado Fabrício Lucindo Lima. Em conversa com a Folha, ele disse que já ouviu todos os integrantes do grupo, e que a versão apresentada foi a mesma, sem contradições: aceitaram a proposta de viajar para Linhares por conta de uma falsa promessa de emprego feita pelo coordenador da Casa de Passagem de Cabo Frio, Thadeu Couto. Em vídeo postado nas redes sociais, Thadeu negou as acusações.
O delegado também disse que, até o momento, não foi possível identificar nenhum tipo de crime penal na ação da Prefeitura de Cabo Frio, mas não descarta apuração de crime de responsabilidade e improbidade durante as investigações do Ministério Público e da Defensoria.
— Chegamos a pensar em um caso de estelionato, mas não foi porque não teve envolvimento de dinheiro. Achamos que fosse aliciamento para trabalho, mas também não foi porque nem trabalho havia. Na verdade, o objetivo da prefeitura era se livrar dos moradores de rua. Agora vamos despachar o caso para o Ministério Público e a Defensoria para darem andamento. E pode ser que haja confirmação de crime de responsabilidade e improbidade administrativa. Mas crime penal, mesmo, não houve — revelou o delegado.
Em recente entrevista ao Bom Dia Rio, da Rede Globo, a defensora do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, Cristiane Xavier Souza, falou em “higienização” ao citar a ação promovida pela Prefeitura de Cabo Frio.
— Nós não podemos exportar pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social. O Rio de Janeiro não vai ser essa cidade, nem por meio de Cabo Frio ou qualquer outra cidade, que vai usar desse artifício para higienizar suas cidades e dar uma solução administrativa.