O descarte de lixo na Fazenda Campos Novos, em Cabo Frio, denunciado no começo de novembro pelo ex-vereador Roberto de Jesus, comprometeu uma pesquisa feita por cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Museu Nacional. Segundo reportagem publicada na edição impressa da Folha dos Lagos, o trabalho, feito no entorno da fazenda, foca na malacofauna holocênica, um depósito de conchas que remonta a cerca de 5 mil anos, e mostra as variações do nível do mar durante o Holoceno, indicando que onde hoje é a Fazenda Campos Novos já foi mar.
A gravidade da situação foi confirmada no último dia 14, quando técnicos do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) estiveram no local e constataram irregularidades. Mesmo com determinação do Inea para remoção imediata do lixo e recuperação do local, homens que prestam serviço para a Comsercaf aterraram os restos de pneus, caixas, móveis, plásticos e outros dejetos, causando danos à área, que é preservada e tombada pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio do Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), desde 2003, e pelo Iphan desde 2011. À Folha, a responsável pelo escritório regional do órgão, Carina Mendes, disse que vai notificar a Prefeitura de Cabo Frio, dando seguimento à denúncia.
Além do valor cultural e histórico, a Fazenda Campos Novos também é um sítio de imenso valor científico e geológico. Segundo especialistas, as conchas encontradas no local são classificadas como um indicador biológico raro que fornecem dados cruciais sobre a variação do nível do mar na região, um fenômeno conhecido como "Transgressão Cabo Frio". A pesquisa também identificou ali 23 espécies de moluscos, sendo oito deles novos registros para a área. Por essa relevância, o sítio abriga sambaquis arqueológicos (registros de antigas populações de pescadores coletores) e foi escolhido como sede do Geoparque Costões e Lagunas.
Em conversa com a Folha dos Lagos, a pesquisadora Kátia Mansur, uma das autoras do estudo, contou que as cavas que existem na fazenda foram frutos da abertura de dois possíveis tanques para a piscicultura.
– No que se abriu aquelas duas cavidades, foi encontrado um nível cheio de conchas articuladas, fechadas, mostrando que se tratava de um depósito natural de alguns processos de sedimentação naquele período. E essas conchas, assim como outras encontradas na região de Cabo Frio, Búzios, Casimiro de Abreu e outros lugares do litoral do estado, como a bacia do Rio Una, são importantes porque demonstram as variações do nível do mar nesse período recente que a gente chama de Holoceno, que são os últimos 11 mil anos. Esse trabalho sobre malacofauna (que significa fauna de conchas presente nesses depósitos conchíferos), pela datação dessas conchas e pelos estudos já realizados, mostram que o mar chegou naquela região da fazenda há cerca de 5 mil anos atrás. Ou seja, o nível do mar subiu cerca de três metros naquela época e alcançou a região da Fazenda Campos Novos. Além dessas conchas, também foram encontradas na região ossadas de baleia. Então, esses depósitos nos ajudam a entender essa variação do nível do mar nos últimos 5 mil anos, por esse aquecimento geral - explicou Kátia.
Por conta dessa importância histórica e geológica, a pesquisadora lamentou não apenas o despejo de lixo no local, como a perda de parte do estudo por conta do uso de máquinas pesadas e do aterramento dos dejetos em área que deveria estar sob proteção constante.
– O material bioplástico é o retrato de um momento, ou seja, ele dá a idade da morte daqueles organismos naquele momento. Com esse lixo ali dentro não há condição de coletar e fazer outras análises naquele ponto. Não por uma questão de contaminação, porque me pareceu que eram restos de imóveis, coisas desse tipo, que não comprometeriam nesse aspecto da datação. Por outro lado, ter colocado material ali pode ter remexido a altura do nível conchífero. E esse nível é importante para servir como base para essas variações do nível do mar, onde é que estava o nível naquele momento. Isso faz diferença para a gente. Não vou te dizer que essa contaminação pode ter comprometido, mas naquele lugar, talvez sim. Talvez o melhor tem que se fazer para se datar novamente ali, teria que fazer alguma coisa ao lado, porque a gente não sabe o quanto foi remexido durante a colocação desse material. Teria que escavar lateralmente para verificar, mas aquele ponto que já vinha sendo estudado, que foi coletado, muito possivelmente ele foi um pouco comprometido com essa movimentação de máquinas sobre ele - lamentou.
Para a pesquisadora, o episódio demonstra o descaso e o desconhecimento sobre a importância do sítio, que ultrapassa a esfera científica.
– Eu acho que do ponto de vista do descarte de lixo ali, o que ele demonstra é o desconhecimento das pessoas sobre a importância daquele lugar e a importância da fazenda em si, como patrimônio brasileiro tombado e patrimônio estadual tombado – afirmou Kátia Mansur, reforçando o valor histórico e natural do local ao lembrar que “não só Darwin passou por ali, mas Santiller passou por ali, Dom Pedro II passou, vários outros pesquisadores passaram por ali, naturalistas”.
Para a pesquisadora, o desconhecimento desse valor, e o fato do pouco cuidado com o patrimônio, é o que mais chama mais atenção neste caso de despejo de lixo na Fazenda Campos Novos.
– A mensagem que a gente precisa dar sobre a importância de divulgar um lugar tão valioso quanto a Fazenda Campos Novos, não só do ponto de vista do prédio histórico, mas dos aspectos geológicos envolvidos, históricos envolvidos com a questão da escravidão, a questão dos povos originários, indígenas, sambaqui que existe ali, e uma série de outras informações que existem nesse lugar. Essa denúncia do descarte feito ali demonstra aí uma falta de conhecimento sobre a importância desse lugar, o pouco caso com um lugar tão importante, pelas pessoas que indicaram o despejo de resíduos sólidos ali naquele ponto - avaliou. Para ela, a prioridade, neste momento, deveria ser a retirada do lixo. “Até por questões sanitárias, de não colocar material inadequado num lugar tão importante quanto aquele. Depois de retirar esse material é verificar o que se pode fazer para recompor a visão e a informação que estavam ali antes. Talvez tenha que escavar um pouco mais para deixar visível a camada. Não sei como ficou, a gente não sabe. Então, depois que esse material for retirado, teríamos que ver como é que vai ficar. Só depois é possível a gente fazer uma análise mais detalhada” - avaliou.
A pesquisadora garantiu que a comunidade científica está à disposição para auxiliar na recuperação do local.
– Estamos sempre dispostos, sempre disponíveis a apoiar todo o trabalho que vier a conservar, a preservar o patrimônio geológico, o patrimônio cultural, o patrimônio histórico da nossa região. Então, sempre podem contar com a gente nesses trabalhos de resgate de informações, e de dar o valor e auxiliar com informações que possam vir a garantir a conservação e a preservação desses lugares - afirmou Kátia Mansur.
A pesquisadora também afirmou que o caso serve de alerta sobre a necessidade de divulgação da relevância histórica e geológica da região. Para ela, o registro da Fazenda Campos Novos é fundamental para o futuro do planeta.
– Eu acho que o importante é dizer o seguinte: esse é um sítio importante para desenhar a curva de variação do mar no passado. E com toda essa discussão sobre mudança climática no planeta hoje em dia, preservar os registros do passado nos ajudam a entender um possível futuro. A ciência traz esses recados para a gente. Da mesma maneira que a história nos mostra a importância do lugar, mostra também que é importante a gente guardar a nossa história, dos nossos antepassados, até mesmo para que tenhamos a certeza de que o povo que não guarda as informações do seu passado, talvez não tenha muito futuro. Pra a gente pensar no futuro melhor, temos que pensar no nosso passado, e não só no passado da Terra, mas no passado das pessoas que viveram e construíram patrimônio como esse que a gente vê na Fazenda Campos Novos.





