Aos 410 anos de fundação, completados no último dia 13, Cabo Frio se vê diante do espelho da própria história (e da própria pressa). Entre os vestígios dos sambaquis que guardam memórias milenares, os casarios coloniais que resistem ao tempo, os imóveis do século XX que ainda contam hábitos de outras gerações e a verticalização que chega sem pedir licença, a cidade trava uma disputa silenciosa para não perder de vista quem é. Para contar um pouco dessa luta entre preservação da história x desenvolvimento, a Folha ouviu diferentes vozes que ajudam a entender como cada camada desse passado (e as pressões do presente) moldam a luta permanente de Cabo Frio para preservar sua identidade.
Do período colonial, o professor, historiador e escritor Luiz Guilherme Scaldaferri lembra que as primeiras casas construídas em Cabo Frio, em 1615 (século XVII), eram simples, de pau a pique. Grande parte delas resistiu até o século XIX, “tirando as construções de pessoas de famílias mais ricas, mais tradicionais”. A consequência dessa perda, segundo o professor, é o desaparecimento dos marcos identitários da cidade.
– O que nós temos hoje, por exemplo, na indústria de sal, como memória na cidade? Nada. O que nós temos hoje da pesca na cidade? Nada. Então, as coisas vão se perdendo, as identidades vão se reconstruindo, mas apagando as identidades anteriores. Isso é muito ruim para a cidade, é muito ruim para as pessoas que moram nela, mas parece não preocupar ninguém – lamentou.
Para a pesquisadora e memorialista Meri Damaceno, a preservação da identidade cabo-friense passa, antes de tudo, pelo reconhecimento das raízes mais profundas da cidade. Esse resgate, segundo ela, começa pelos sambaquis, que devem ser priorizados como patrimônio, ao lado do legado do homem pré-histórico e do indígena tupinambá.
– A importância de preservar tudo isso, desde a pré-história até um casarão do século XIX ou início do século XX, é que conta a nossa história, quem fomos e quem somos – defende Meri.
Infelizmente, grande parte desse patrimônio mais antigo da história de Cabo Frio não resistiu aos 410 anos e ao desenvolvimento da cidade. Para Scaldaferri, o grande acelerador desse processo de perda foi o processo de turistificação.
– Eu acho que o grande “boom” desse fim da arquitetura colonial é esse processo de turistificação que começa nos anos 1950 e se acelera muito nos anos 1970 com a criação da ponte Rio–Niterói – pontua ele.
Essa aceleração, diz o professor, leva a uma modernização desenfreada e à discussão de que a cidade não tem mais construções coloniais relevantes, a não ser o Forte São Matheus, o Museu de Arte Religiosa e Tradicional, o Convento Nossa Senhora dos Anjos e o próprio Charitas, que já é do século XIX.
– A falta de resistência à especulação imobiliária é muito ruim para a cidade, muito ruim para o turismo.
A partir de 1940,
um projeto urbanístico
voltado para o turismo
O discurso de defesa pela preservação de todas as camadas da história de Cabo Frio (dos sambaquis aos imóveis do início do XX), em meio à pressão imobiliária, ganha profundidade quando o arquiteto, especialista em planejamento urbano integrado e mestre em projeto e patrimônio, Ivo Barreto, explica como a própria formação urbana de Cabo Frio revela essa sucessão de tempos. Ele lembra que a cidade nasceu dividida entre dois núcleos: um próximo à Passagem, e outro entre o Itajuru e a Igreja Matriz. Esses núcleos, segundo ele, cresceram pouco ao longo dos séculos e se voltavam para o canal do Itajuru, então área portuária, ponto de ancoragem de barcos, barcas de sal e embarcações de passageiros.
– A partir da década de 1940 a cidade ganha um projeto urbanístico voltado ao turismo e ao veraneio, e a partir desse momento ela cresce dentro do cinturão viário, que hoje é composto, mais ou menos, com algumas modificações, pela Avenida do Contorno, pela Avenida Júlia Kubitschek, e se juntam onde, mais ou menos, hoje é a padaria Remmar (ao lado da garagem da 1001). Esse circuito formado por essas vias compõe o que foi a cidade projetada em 1942. Já no final da década de 1950, Cabo Frio superou esses limites em função de novos loteamentos que foram surgindo. E dessa cidade projetada, para a que se implementa depois, é que mora a grande transformação. A Cabo Frio que foi projetada na década de 1940 tinha uma série de áreas públicas que foram sendo substituídas por uma tendência de privatização e criação de terrenos com embarcadores particulares. Acho que essa perda de áreas públicas talvez seja a característica mais marcante das mudanças que foram acontecendo a partir da década de 1950 em diante. Elas passam a dar lugar a loteamentos particulares e à privatização – contou Ivo.
A partir dessas transformações, Ivo explica que a expansão de Cabo Frio acabou criando uma pressão crescente sobre o território dentro do cinturão viário projetado em 1942, área originalmente pensada para abrigar residências, e não edifícios multifamiliares. Segundo ele, as pranchas e os desenhos daquele projeto mostravam uma cidade voltada ao turismo, mas com baixa densidade. Por isso, quando o adensamento começa a ocorrer dentro desse perímetro, a malha viária passa a ser imediatamente sobrecarregada.
– Os primeiros exemplares de prédios que aparecem na pesquisa sobre arquitetura moderna são da década de 1950. A ocupação da praia é um pouquinho posterior: os edifícios que vão estar na beira da praia vão se aproximar da década de 1970, mas, a partir da década de 1950, a gente já tem uma série de edifícios que começam a ser construídos, já apontando para essa mudança de estratégia, que era muito mais interessante do ponto de vista financeiro de quem investia em construção aqui. A cidade sofre com isso. Se a gente fala hoje no efeito disso, é bastante razoável pensar que essa área dentro do cinturão viário projetado da cidade deve ser protegida. A legislação tem que fomentar que qualquer tipo de verticalização seja feita fora dessa área. A verticalização não necessariamente é ruim, mas ela tem que ser colocada a serviço – e em benefício – da qualidade da cidade, dotando essas novas áreas de infraestrutura adequada e preservando as áreas antigas de um adensamento onde o arruamento e a infraestrutura não dão conta de absorver o que se projeta com ele – explicou Ivo Barreto.
“A memória vai ao chão
junto com a casa
demolida”
Quando não há essa proteção e a cidade cresce “totalmente desestruturada”, Meri Damaceno lembra que a tradição e a identidade local se perdem.
– A memória da gente se perde, vai ao chão junto com a casa demolida.
Outras perdas causadas pelo crescimento desordenado, segundo Meri, são as memórias afetivas, visuais, gustativas e olfativas.
– A gente perde a memória da casa do seu fulano, que fazia aquela comidinha, aquele peixe; do pipoqueiro que não faz mais a pipoca na casa dele e não sai mais no carrinho para vender; da dona fulana, que fazia o melhor siri de Cabo Frio e morava naquela casa. A memória também do cheiro: o cheiro da maré, do vento Nordeste e Sudoeste que não chegam mais porque no lugar daquele conjunto arquitetônico de casas do século XIX e do século XVIII levantaram prédios de cinco, seis, sete, oito andares. Aí você não sente mais o vento como era, você não sente mais a brisa do mar, você não sente mais o cheiro do sagarço que vem da praia, da maresia que vem da lagoa, do cheiro antigo da salina… Perdemos a história, o patrimônio histórico e várias memórias que deixam um vazio muito grande – explicou Meri.
A especulação como
prioridade: os
casos recentes
E não é preciso voltar muito no tempo para lembrar da perda de prédios com importância histórica, cultural e afetiva para Cabo Frio. Depois de quatro anos de muitos debates e discussões, em julho de 2021 foi ao chão o que restava da estrutura do antigo Galpão de Sal, na Passagem. Sem uma definição por parte do Conselho Municipal de Patrimônio quanto ao destino do imóvel, de propriedade privada, o que restava do conjunto arquitetônico que remetia ao período salineiro na cidade foi demolido.
– Recentemente também perdemos a casa do ex-prefeito Edilson Duarte. Foi ao chão uma arquitetura rara aqui em Cabo Frio, e que não protegemos porque estávamos preocupados com os casarios dos séculos XVIII e XIX, e temos mesmo que nos preocupar. Então, restou um pouco da Passagem, mas não tem mais o povo da Passagem. É por isso que, quando se fala em casa demolida, todo mundo fica muito melancólico: isso é afeto, e não tem volta, infelizmente – lamentou Meri.
À Folha, Sérgio Nogueira , arquiteto e presidente do Instituto Municipal do Patrimônio Cultural (Imupac), lembrou que a realidade do desenvolvimento urbano de Cabo Frio tem sido marcada pela prioridade imobiliária.
– Precisamos criar leis que permitam as mudanças de uso e ocupação no território, mas que possam identificar o que a sociedade cabo-friense entende que é importante preservar. Essa legislação hoje não temos.
Sérgio Nogueirac também defende a criação de um inventário municipal, arquitetônico, artístico e cultural, dos bens materiais e imateriais, tombados ou não.
Transferência de
potencial construtivo:
uma ferramenta ainda
a ser regulamentada
Segundo Ivo Barreto, o Plano Diretor de Cabo Frio possui uma ferramenta importante, que é a transferência de potencial construtivo.
– Essa ferramenta precisa de lei específica para ser regulamentada. A proposta dela é que as áreas que sejam mais restritas (de patrimônio cultural, protegidas por meio ambiente, de controle de gabarito mais rigoroso) possam vender esse acesso construtivo para áreas que estão projetadas para receber esse acréscimo de altura, como áreas novas, fora dessa centralidade antiga. Então, o Plano Diretor, sozinho, não dá conta. Mas cabe aos legisladores modernizarem o seu arcabouço legal. Não adianta lutar contra a preservação dos ativos que justificam o próprio turismo de Cabo Frio, seja ele cultural ou de meio ambiente. É preciso é coragem de legislar, com uma legislação moderna, projetando a cidade para poder crescer com qualidade, preservando seus ativos; se a gente não os protege, o próprio turismo perde o sentido – avalia Ivo.
– Os órgãos de cultura e patrimônio municipais necessitam de mais investimento, melhorias na estrutura administrativa e, principalmente, que a sociedade civil apoie e valorize as ações culturais no município, e a cultura seja valorizada como desenvolvimento – diz Sérgio.





