São mais de 6 mil edições impressas. Nelas, estão capítulos significativos da história da região. A Folha começa a republicar alguns dos textos memoráveis que fazem parte do acervo de jornais antigos. Neste primeiro, que ganhou as ruas da região através do suplemento cultural Caderno, em 11 de novembro de 1995, o artista Carlos Scliar faz uma defesa firme da cultura e da memória cabo-friense.
Especial
11 de Novembro de 1995
Caderno
Scliar
Cabo Frio está entre as cidades que eu conheci num dos meus primeiros contatos com o Brasil. Eu vivi no Rio de Janeiro, cidade que admiro profundamente. Há mais de cinquenta anos atuo como artista, jornalista e cronista, fazendo com que boa parte do meu tempo seja dedicada ao Cabo Frio. Até hoje, mantenho uma residência nesta rica cidade da região dos lagos. Já vivi sua história de glória e também de decadência.
Foi o jornalista, grande amigo, Mário Faustino quem primeiro me falou sobre Cabo Frio. Muitas pessoas falavam nos dejetos, por insistência do meu grande amigo, Aloísio de Paula, que não só foi o responsável pela minha vinda... como esteve comigo até agora em quase tudo. Cabo Frio sempre foi para mim um lugar de muita amizade, de um lugar que era de ninguém, mas que acabava me decepcionando, por ser um lugar onde os valores estavam em constante rotação. Havia uma espécie de nostalgia nos artistas que por aqui passavam. Em meu trabalho aqui pela cidade, estabeleci relação com a casa do Aloísio e com o passado colonial da cidade. Hoje em dia, a casa de número 44 da rua também está correndo o risco de ser transformada em algo que não representa a sua origem.
Minha relação com a cidade tem sido de um artista que procura na memória e na paisagem um elo com o sentido da vida. Cabo Frio é uma cidade do século XVII. E aqui há um pouco de tudo. Existe uma presença muito marcante da cultura indígena, da presença africana. E o que vemos hoje é uma cidade que perdeu grande parte de sua história.
Cabo Frio hoje tem 70% do meu tempo trabalhando mesmo porque é próximo do Rio, onde posso resolver um série de problemas profissionais e aqui tenho meu ateliê onde posso me concentrar e trabalhar.
Mas devo dizer que muita coisa mudou e a cidade foi sendo transformada pelo processo turístico. Hoje é impossível fazer um trabalho em profundidade como antigamente, sem se deparar com a morte da história da cidade. Eu sou defensor da memória. Acredito que as cidades se definem quando se ocupam de seu patrimônio, quando se determinam por sua história e que o maior patrimônio são as pessoas que moram nela.
Eu estou em um momento de grande definição no Brasil. Acabei de vir de uma temporada onde tive a chance de conhecer mais profundamente a nossa pintura e arte popular. Estou trabalhando com um fundo cultural artístico. É uma forma de buscar recursos e dar mais condições de ajudar cidades como Cabo Frio a manter sua história. Estou com um projeto de uma exposição que chamo de “Brasil de Pargo Amarelo”, que não é brincadeira: um museu popular itinerante que possa conscientizar um maior número de pessoas sobre a importância do resgate do popular, que é uma força esquecida por muitos. Esse projeto conta com o apoio de alguns órgãos internacionais e pode ajudar no processo de consolidação de um olhar mais generoso sobre o nosso tempo.
Cabo Frio é uma cidade que está com uma urbanização desordenada, com pessoas que não têm compromisso com a memória. Isso me deixa triste. Eu venho para cá para descansar, para trabalhar e o que eu vejo é um caminhão que faz questão de desordenar essa casa, esse espaço que era tão rico em história.
As pessoas perderam o vínculo com a cidade. Não existe mais laço social com nada. Eu fico triste ao ver que meu filho nasceu aqui e que ele dificilmente poderá viver nesse lugar com liberdade. Isso me preocupa.
Tem muita coisa que Cabo Frio precisa fazer por si mesma. É preciso criar uma política de defesa dos bens culturais e ambientais. A cidade está sendo consumida por seus próprios filhos.
Em minhas mãos, estou com novos mapas, com livros e com algumas ideias que quero fazer circular. Tenho muito o que dizer sobre essa cidade. Eu gosto de viver aqui e tenho ainda um carinho muito grande por esse lugar.
Acho que ainda dá para fazer muita coisa se você compreender a cidade como um lugar de encontros e de cultura.
Fico feliz de ter deixado as sementes de vários trabalhos aqui. É uma forma de dizer que tudo não está perdido.
Estamos vivos. Necessitamos de espaço. Não somos a favor da destruição. Somos a favor da criação de um novo mundo. Cabo Frio deve deixar de ser um lugar de veraneio para ser um lugar de memória.
Acho que não sou o dono da verdade, mas tenho o dever de tentar defender.