No mês em que Cabo Frio celebra 410 anos, um espetáculo sobre memória, território e pertencimento ganha a cena e se inscreve, também, como parte das comemorações simbólicas. “Refinaria”, adaptação teatral do livro homônimo de Rodrigo Cabral, finalista do Prêmio Jabuti 2025, estreia no Teatro Quintal (Rua Américo Ferreira da Silva, n.º 3, Parque Burle), com apresentações nesta quinta (27) e na sexta (28), às 20h. A montagem reúne o ator Guilherme Guaral, o diretor Rodrigo Sena, o compositor Junior Carriço e projeções inéditas de Douglas Lopes. Os ingressos custam R$ 25, com reservas pelo telefone (21) 99342-8893. A estreia tem apoio cultural de Tia Maluca, Cabo Frio Convention Bureau, Dr. Leonardo Mignot e Folha dos Lagos.
Lançada pela Sophia Editora em 2024, a obra é uma travessia poética pela Região dos Lagos e o que permanece quando o tempo altera, move e reorganiza os lugares. Salinas que viram bairro, ruas que mudam mas conservam uma figueira centenária, memórias de infância que resistem à urbanização, ao vento e ao sal. É um universo muito marcado por Cabo Frio e sua história —e o ponto de partida para a criação cênica.
A conexão de Guilherme Guaral com a obra antecede o processo de ensaios. Ele conheceu Cabral em outro período, quando o autor se dedicava à música. Tempos depois, os dois se reencontraram por causa de "Unidos da Democracia: as escolas de samba do Rio de Janeiro e os enredos políticos na década de 1980", livro do próprio Guaral publicado pela Sophia Editora em 2022. O ator, que já participou de filmes e séries como Tropa de Elite (2007), Vidas Partidas (2015) e Sob Pressão (2017), acompanhou de perto o movimento editorial de Cabral e se interessou pela forma como o escritor vinha investigando memórias, paisagens e identidades. Quando “Refinaria” foi lançado, deu-se o impulso:
— Falei: ‘Rodrigo, vamos fazer uma adaptação teatral?’. Encontrei um monte de possibilidades teatrais e uma vontade de voltar a fazer teatro — conta ele, que volta aos palcos após 10 anos.

Mas a ideia não era transcrever os poemas e recitá-los. Era criar uma narrativa nova, capaz de deslocar a poesia para o palco. Como amarrar essa história? "Esse talvez tenha sido o maior desafio", diz o ator, que, junto com Rodrigo Sena, diretor da montagem, se debruçou sobre como construir um personagem, um percurso e uma dramaturgia que harmonizassem com o livro, mas não se prendessem a ele.
Depois de discussões, testes e tentativas, encontraram o fio condutor: um escritor que não volta à cidade há mais de vinte anos e que recebe um convite para uma homenagem. Ele quer voltar, mas não quer. Ama o lugar, mas teme reencontrá-lo. A viagem se torna um retorno aos próprios vestígios —infância, adolescência, juventude.
O processo de Guaral, então, passou a ser o de dar corpo a esse homem dividido entre saudade e resistência.
— Tento dar cor e imagem às palavras e à poesia do Rodrigo, que são complexas e, muitas vezes, fora do realismo. Tento encontrar essa química entre emoção e projeção de imagens oníricas, poéticas, surreais.
Ele diz que muitos momentos lhe tocaram de modo pessoal.
— Mexeram com a lembrança, a saudade, a infância. Situações que vivi ou que vi meus filhos viverem aqui, no Portinho, na Rua da Árvore. É uma montanha-russa de emoções.
E não é por acaso: parte da força do livro está em espelhar como o local onde nascemos, crescemos ou vivemos é importante para nossa formação, ainda que inconscientemente. O espetáculo reverbera o sentimento coletivo de quem ao mesmo tempo reconhece na cidade um território de memória e de mudança.
Há mais de 20 anos atuando no teatro, Sena diz que o primeiro passo foi mergulhar nas poesias de Cabral. Delas foram surgindo o conceito, a estética, o ritmo e a estrutura da encenação. Segundo ele, o audiovisual ocupa papel essencial, mas não como ilustração.
— Não queríamos um vídeo demonstrativo. Queríamos uma construção que se conectasse com a cena, que fizesse uma simbiose.
O fotógrafo e videomaker Douglas Lopes passou a integrar o processo já nos ensaios, observando o ator, a direção, o ritmo e o espaço para criar projeções que captassem “sutilezas do patrimônio histórico e ambiental de Cabo Frio”, como descreve a própria sinopse. Antes, Douglas filmou o clipe de um poema do livro, "Moleques do Peito Solar".
— Esse clipe viralizou no Instagram, passando de 100 mil visualizações, e, desde então, o Rodrigo alimentava a ideia de montar um espetáculo com projeções. Topei na hora porque amei o livro, cuja atmosfera é muito o que faço no meu trabalho de audiovisual.
Douglas compartilha que os versos o tocaram tanto que ele quis tatuar um deles. Primeiro longa de sua vida, "em minutagem", como ele frisa, o trabalho não foi realizado sem desafios.
— Nunca tinha feito um. Precisamos ter muito cuidado com gravações, roteiro e detalhes. Foi difícil, principalmente pelo tempo em que ele foi feito. Tivemos muita chuva, que impossibilitou diversas gravações e nos fez remarcar várias vezes. Mas agora está tudo gravado. Estamos nos ajustes finos para chegar à perfeição — afirma.
Sena diz que o processo foi longo antes de chegar ao palco. Houve um tempo de maturação até que os ensaios começassem. Depois disso, tudo avançou rápido.
— Planejamos muito bem e sabíamos muito o que queríamos. Criamos coisas que pareciam fáceis na cabeça, mas difíceis de implementar. Encontramos soluções para tudo.
Ele afirma que o teatro, por natureza, nunca está pronto:
— É vivo. Vamos seguindo, experimentando e melhorando no que for preciso.
No contexto atual, realizar uma obra teatral é também um ato de resistência, diz.
— Depois da pandemia, o teatro foi altamente afetado. Realizar um trabalho artístico é um desafio. Este espetáculo se junta a outros que têm tentado levantar a cena teatral em Cabo Frio — ressalta ele, que também é autor de títulos como “Laços Rubros” e “O Sopro".
Professor, músico e compositor, Junior Carriço chegou à montagem para produzir a trilha sonora e conta que também se encantou pelo livro.
— O que faz com que toda essa música aconteça é a força poética da produção do Rodrigo — explica o autor de "Recovecos", livro que reúne 56 letras de suas composições.
Depois de ler a obra, ele diz, todos os envolvidos sentiram o impacto emocional do texto.
Junior decidiu usar material de seu acervo pessoal —canções, ideias, rabiscos anteriores—, reorganizando tudo em função da dramaturgia.
— Usei coisas da minha da minha lavra, para diferentes momentos da peça, sempre a partir do violão.
Em um dos trechos, a música precisou renascer:
— Talvez uma delas a gente tenha feito a melodia nova para casar com o verso.
No palco, "Refinaria" vira mais reflexão e confronto, sem ignorar o movimento do próprio livro, que abre caminhos para um mosaico de referências, como a geologia do pré-sal, a cana-de-açúcar de Campos dos Goytacazes, as influências dos escritores José Lins do Rego, Olga Savary e Victorino Carriço, avô de Junior —uma canção de Victorino, “Voltei ao Baixo Grande”, está na trilha do espetáculo na voz do neto.
Mas a peça não tenta abarcar todos esses temas ao pé da letra. A adaptação nasce das memórias do território e do processo de refinamento —literário, afetivo, geográfico— que acontece tanto no livro quanto na vida real. Porque, como escreve o autor, "todo poeta calango / ejeta-se do corpo / desencarna do verso / e regenera-se na vida".

Espetáculo estreia no Teatro Quintal (Rua Américo Ferreira da Silva, n.º 3, Parque Burle), com apresentações nesta quinta (27) e na sexta (28), às 20h - Crédito: Douglas Lopes


