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Apagão de dados sobre agrotóxicos na água se agrava com a pandemia do coronavírus

30 março 2021 - 17h31Por Lara Barsi e Sabrina Lorenzi, da Agência Nossa

Um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, o Brasil não controla os níveis dessas substâncias na água como prevê a legislação. A regulamentação estabelece que as concessionárias têm obrigação de realizar controle periódico – o que não tem sido realizado segundo secretarias de saúde, pesquisadores e laboratórios responsáveis pelas análises. Faltam ainda infraestrutura, acompanhamento e fiscalização por parte de municípios, estados e governo federal.

A liberação de mais de mil novos produtos no País em apenas dois anos não foi acompanhada de medidas para que os órgãos competentes façam o monitoramento estabelecido. Para piorar, a pandemia restringiu recursos dos órgãos de saúde, que tiveram de focar nas demandas impostas pela Covid. O resultado é um apagão de informações em várias localidades da federação, colocando em risco a saúde da população.

A reportagem da Agência Nossa procurou todos os estados citados como potenciais alvos de preocupação por níveis de agrotóxicos na água. O resultado é uma série de 15 reportagens com mais de 40 fontes, entre secretarias de saúde, de meio ambiente, laboratórios, órgãos federais, representantes de sistemas de saneamento, pesquisadores, cientistas, voluntários engajados com a causa ambiental e organizações da sociedade civil.

Hoje são autorizados no Brasil mais de 500 ingredientes ativos de agrotóxicos em 3.158 produtos comercializados. A norma que regulamenta o tema determina o monitoramento obrigatório de apenas 27 princípios ativos para avaliar se a água é segura para o consumo humano, mas nem de longe esta lista básica é monitorada com a frequência e abrangência que deveria, segundo relatos e levantamentos a que a Agência Nossa teve acesso.

A doutora em toxicologia e tecnologista do laboratório da Escola Nacional de Saúde Pública Fiocruz, Ana Cristina Simões Rosa, revela que o órgão vinculado ao Ministério da Saúde acaba tendo de fazer boa parte do trabalho que deveria ser feito pelas concessionárias de saneamento.

“O Ministério da Saúde tem obrigação de cobrar das concessionárias que elas forneçam uma água de qualidade, e faz isso através da lei. Mas as concessionárias escorregam no cumprimento da lei”, afirma a química, em entrevista à Agência Nossa.
Segundo ela, não é possível afirmar como está a qualidade da água brasileira só com as amostras da vigilância do Ministério da Saúde.

Com exceção de Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Ceará, que analisam amostras de água por conta própria, todos os demais estados, por não terem uma estrutura para fazer, enviavam, até o período da pandemia, suas amostras para o laboratório da Fundação Oswaldo Cruz e para a unidade do Instituto Evandro Chagas (IEC).

As regiões Norte e Nordeste são as que menos informam dados no sistema de monitoramento da água do Ministério da Saúde e a falta de informações preocupa, sobretudo em regiões agrícolas, onde são utilizados fertilizantes e pesticidas com mais frequência.

“O que a gente faz não é uma contra-prova, é como se fosse um trabalho extra do trabalho da concessionária. Se todo mundo fizesse seu trabalho, o Ministério da Saúde não precisaria gastar esse dinheiro que gasta fazendo a checagem (…) as concessionárias fazem aquém do que elas deveriam fazer, então a gente precisa dessa fiscalização com amostras laboratoriais, inclusive. O papel acaba ficando invertido”, afirma a toxologista da Fiocruz.

“O governo deveria criar mecanismos que tornassem obrigatória a inserção dos dados de monitoramento no sistema de dados do ministério (SISAGUA). O que percebemos atualmente é que não há nenhuma consequência aos gestores que não atendem a esta determinação. Os motivos são variados e passam por posição política até a falta de estrutura dos municípios”, afirma o doutor em agronomia e pesquisador de Dinâmica Ambiental de Pesticidas na Embrapa, Robson Barizon.

O Anexo XX da Portaria de Consolidação n° 05/2017, do Ministério da Saúde estabelece que as concessionárias ou os responsáveis pelo saneamento local realizem o monitoramento de agrotóxicos no ponto de captação, na saída da Estação de Tratamento de Água (ETA) e no sistema de distribuição ou pontos de consumo. O plano de amostragem para os parâmetros de agrotóxicos deve considerar o local do uso dos produtos e a sazonalidade das culturas.

Por outro lado, compete à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde promover e acompanhar a vigilância da qualidade da água em articulação com as Secretarias de Saúde dos estados, do Distrito Federal, municípios e seus respectivos responsáveis pelo controle da qualidade da água.

“Precisamos que os programas de monitoramento sejam institucionalizados pelas secretarias estaduais (…) Acho que isso que é o mais urgente, de se estabelecer e estruturar programas oficiais, não apenas essas iniciativas acadêmicas onde um grupo de pesquisa desenvolve”, afirma Barizon.

“Com certeza a fiscalização deveria aumentar, em todos os âmbitos: federal, estadual e municipal. Há agrotóxicos não autorizados ou ilegais no Brasil que foram identificados na água. Nisso, por exemplo, a fiscalização é fundamental, além da efetiva responsabilização efetiva dos agentes violadores”, afirma a advogada popular da Terra de Direitos e integrante do grupo de trabalho Biodiversidade da Articulação Nacional da Agricultura, Naiara Bittencourt.

A advogada defende que, além da responsabilização dos gestores, haja mais fiscalização em todas as esferas do poder executivo. “Mas não é só uma questão de fiscalização, é preciso também mudanças mais rígidas nas concentrações permitidas de agrotóxicos na água e no número de substâncias testadas”

A Política Nacional de Redução de Agrotóxicos em trâmite no Congresso Nacional, já aprovada em comissão especial, “é uma dessas iniciativas necessárias”, segundo ela.

“No Brasil temos mais de 500 ingredientes ativos autorizados que não são testados. “Podemos ingerir tais substâncias cotidianamente sem informações. Também não são realizados estudos dos impactos das interações e misturas entre essas substâncias na água, que podem ser mais danosas e severas” .
Estas iniciativas, além do avanço acelerado na autorização de novas substâncias no Brasil aumentaram a pressão para um maior rigor na regulamentação. Em maio do ano passado, o Ministério da Saúde abriu consulta pública para revisão do Anexo XX da Portaria de Consolidação número 5 que regulamenta o tema. A Agência Nossa consultou o Ministério da Saúde sobre as mudanças.

Outro problema que impacta o monitoramento de agrotóxicos na água é a falta de infraestrutura para a realização das análises. O Ministério da Saúde disponibiliza laboratórios de referência nacional para análises de agrotóxicos em água para consumo humano para a situação em que a unidade da federação não disponha de laboratórios para execução dessa atividade. Os dois laboratórios de referência até 2020 eram da Fiocruz e do Instituto Evandro Chagas. Por problemas técnicos agravados pela pandemia, o segundo teve de interromper as análises.

O resultado foi um apagão nas análises de amostras para agrotóxicos em vários estados brasileiros.

O Maranhão, por exemplo, informou à Agência Nossa ter ficado sem análises por mais de um ano porque o equipamento utilizado pelo laboratório de referência do Ministério da Saúde na realização das análises de agrotóxicos encontrava-se com problemas técnicos, sem possibilidade de atender às demandas desde dezembro de 2019.

“O Ministério da Saúde vem trabalhando na inclusão de outros quatro laboratórios na rede de referência nacional, sendo que um deles já está atendendo a demanda de alguns estados – Fundação Ezequiel Dias (Funed/MG)”, respondeu o Ministério da Saúde por meio de sua assessoria de imprensa.

Mesmo antes da pandemia, os laboratórios do governo federal não davam conta de analisar todas as substâncias estabelecidas na norma. Por outro lado, a Fiocruz busca incluir nas análises os outros 79 princípios ativos sobre os quais as secretarias estaduais relatam uso. Essas substâncias não estão na lista de monitoramento do Ministério da Saúde.

“Aqui eu analiso 15 dos 27 agrotóxicos da Portaria 05/2017 do Ministério da Saúde. O Evandro Chagas faz alguns e outros não. Não fazemos inspeções de todos que estão na lei. Mas por outro lado incorporamos outros, que ainda não estão incluídos na lei, mas que os estados relatam que são usados (…) o nosso método analisa 94 agrotóxicos (…) Não analisamos tudo que está na lei, mas fazemos mais do que a lei pede.”

Legislação ambiental

A legislação ambiental também estabelece controles por estados, mas faltam programas próprios, segundo os especialistas. A pesquisadora e professora no Laboratório de Ecotoxicologia e Genotoxicidade da Faculdade de de Tecnologia da Unicamp, Gisela Umbuzeiro, destaca que os programas de monitoramento dos estados devem seguir os preceitos da Resolução 357 do CONAMA e que as ações dependem das classes de enquadramento dos corpos hídricos.

“Os estados, através dos seus órgãos ambientais, são responsáveis pelo monitoramento da qualidade da água com base na Resolução Conama 357/2005, porém muitos estados não têm esse programa estabelecido.” aponta Umbuzeiro.

A Resolução Nº 357, de 17 de março de 2005, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), órgão consultivo e deliberativo do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), dispõe sobre a classificação dos corpos de água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, bem como estabelece as condições e padrões de lançamento de efluentes, e dá outras providências. O Artigo 38 do Capítulo V (Diretrizes Ambientais Para o Enquadramento) diz que: “O enquadramento dos corpos de água dar-se-á de acordo com as normas e procedimentos definidos pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos-CNRH e Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos.”

O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Rodrigo Fracalossi, autor do autor da publicação “Agrotóxicos no Brasil: Padrões de uso, política da regulação e prevenção da captura regulatória”, também alerta para a necessidade de os órgãos estarem atentos a todas as regiões em que a agricultura está presente.

A falta de padronização de métodos de coleta, análise e de parâmetros para a fiscalização é outro problema apontado pelo autor do estudo “Panorama da Contaminação Ambiental por Agrotóxicos e Nitrato de origem Agrícola no Brasil Cenário 1992/2011”, de Barizon.

Deixa que eu deixo

A Agência Nossa procurou o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama sobre a resolução do Conama, mas não obteve resposta. A assessoria de imprensa sugeriu que procurássemos o Ministério da Agricultura e a Agência Nacional de Águas para o tema de monitoramento. E lá fomos nós.

A ANA esclareceu que “realiza o monitoramento qualitativo da água, mas tal monitoramento considera aspectos físico-químicos da água, como Oxigênio dissolvido, pH, Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO), temperatura da água, Nitrogênio total, Fósforo total, entre outros. E devolveu para o Ibama:

“No entanto, o monitoramento específico de agrotóxicos fica a cargo de órgãos ambientais, como o IBAMA e órgãos estaduais de meio ambiente. Por isso, você pode obter as informações solicitadas junto aos órgãos em questão.”

“A ANA não tem a atribuição de monitorar especificamente a questão de agrotóxicos por se tratar de uma questão de cunho ambiental.”
Procuramos de novo o MMA, que também responde pelo Ibama, mas novamente não obtivemos resposta. Também procuramos o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

“O MAPA só registra produtos que foram aprovados pelo IBAMA e ANVISA, o que garante a segurança desses produtos tanto para o meio ambiente quanto para a saúde humana. Os produtos registrados contêm recomendações de uso aprovadas por esses órgãos e que devem ser seguidas pelos produtores rurais. A obediência a essas recomendações garante a segurança no uso”.

Representantes de sistemas de saneamento também foram procurados, mas não responderam até o fechamento desta série de reportagens.

Falta de infraestrutura

A Fiocruz não analisa todos os agrotóxicos presentes na Portaria de Consolidação Nº 5/2017 do Ministério da Saúde, que define os procedimentos para o controle e a vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade devido à “dificuldade em ter os equipamentos necessários para analisar as amostras encaminhadas pelos estados”.

A toxicologista Ana Cristina Simões Rosa afirma que a Fiocruz tem tentado trabalhar com outros laboratórios para conseguir fazer o máximo de verificações possíveis.

“Existe uma inviabilidade em detectar todos os agrotóxicos presentes na portaria atualmente. A gente tem uma dificuldade técnica de ter vários equipamentos caros para analisar uma mesma amostra. Os laboratórios públicos têm impasses. E não existe um conformismo. A gente tem conversado com o Ministério da Saúde, ficamos empenhados em tentar resolver, e temos tentado trabalhar em conjunto com outros laboratórios. É um investimento muito grande que os laboratórios precisam fazer. E agora também tem a questão da pandemia, que atrasa o serviço, pois a equipe está trabalhando só duas vezes na semana.”