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Coluna

Necropolítica

02 novembro 2022 - 16h35

Uma das prerrogativas do estado é exercer a soberania de poder escolher quem deve viver e quem dever morrer em uma sociedade. Esta introdução parece muito forte. E é! A má distribuição de renda, que ocorre na maioria dos países, é o instrumento utilizado para a escolha dos que vão viver ou morrer. Na maioria das vezes a ação do estado é equivocada, e a omissão é somada à negligencia. 

Achille Mbembe, filósofo e teórico político camaronês, foi quem criou e explorou o tema “Necropolítica”, relacionando-o ao “biopoder”, conceito criado por Michel Foucault (1926 – 1984), em referência ao uso do poder social e político para controlar e disciplinar a vida das pessoas. Mbembe denuncia que mais do que o direito de matar, o estado utiliza também o direito de expor pessoas à morte civil ou social, direito de escravizar de forma subliminar e outras formas de violência política. Na distribuição desigual de oportunidades o sistema capitalista decreta a vida ou a morte de seus cidadãos. No período colonial a violência era a forma de alcançar mais rentabilidade; no pós-colonial, a violência converteu-se num fim nela mesma. Mbembe diz ainda que a soberania não se localiza no interior das fronteiras do estado-nação ou das instituições internacionais, mas no poder de decidir quem pode viver e quem há de morrer, segundo critérios estritamente econômicos. Foucault dizia que “o poder opera de modo difuso, capilar, espalhando-se por uma rede social que inclui instituições diversas, como a família, a escola, o hospital, a clínica. Ele é, por assim dizer, um conjunto de relações de forças multilaterais”. Em outras palavras, o povo está subordinado ao poder, com uma espada pendente sobre sua cabeça, tal qual a “espada de Dâmocles”.

Mas esse poder exercido pelo estado vem desde os tempos antigos. Nos tempos bíblicos do Velho Testamento, são muitos os registros de convocação compulsória de soldados para guerrearem em favor de impérios, sabendo-se que para a maioria representava a morte certa. No mundo contemporâneo não tem sido diferente. A realidade é que na maioria das situações as guerras travadas têm como justificativa a defesa da soberania nacional, em retaliação às ofensas perpetradas ou direitos usurpados, porém sempre fomentada por interesses econômicos. Entretanto isso não justifica o sacrifício de vidas humanas, nem animais. Jean-Paul Sartre (1905 – 1980), filósofo e escritor francês, resume numa frase a incongruência da guerra: “Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem”.             

Um filme de 2005, “O senhor das armas”, estrelado por Nicola Cage, fazendo o papel de um negociante de armas que ficou milionário vendendo armamentos para grupos terroristas na África e Ásia, é o retrato da banalização da vida em detrimento do enriquecimento de alguns. O mais estarrecedor é que as grandes potências econômicas do mundo avalizam esse tipo de negócio. Essa é a realidade do nosso tempo.    

De todas essas situações que mostram o poder estatal sobre a vida e morte dos cidadãos, a situação social influenciada pelo fator econômico é a que mais se manifesta. Na área da saúde pública, o estado exerce plenamente a sua capacidade de escolher quem vai viver ou morrer. Ao obstruir o acesso de um enfermo ao sistema público de saúde, por negligência ou omissão, está oficialmente decretando a morte de um ser humano. E o mais relevante é que as maiores verbas dos orçamentos públicos estão destinadas exatamente à saúde. Na outra ponta os maiores escândalos de corrupção e desvios de verbas estão relacionados à área da saúde.             

Recentemente vi um cidadão brasileiro, em plena praça pública de certa cidade, em alta voz exigindo das autoridades concessão de um determinado medicamento do qual necessitava para viver. Outro sofreu por quase um ano sem diagnóstico identificado, sendo preterido em atendimento no sistema oficial de saúde até vir a falecer de câncer. Essa é a realidade de milhares de brasileiros.  

Nossa Constituição Federal preconiza no Art. 5º que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...” Muito bonito de se ler, mas frustrante na prática, principalmente quando lembramos de uma frase atribuída a Napoleão Bonaparte (1769 – 1821), estadista francês, que disse: “A constituição é uma muralha de papel”. De certa forma explica o porquê de não ser obedecida.

Enquanto isso, dinheiro público sendo gasto com shows, obras não prioritárias e outras futilidades. Esquecem de que a vida sempre tem prioridade.