O ano em que Cabo Frio entrou na rota dos mistérios de Pablo Escobar
"Você pode dar uma passadinha aqui na Rua do Escobar?”. Volta e meia, o chamado vem na comunicação interna dos funcionários do Condomínio Bosque do Peró. É assim que eles se referem, de forma bem-humorada, à Rua Cambuçá, localizada na parte alta do residencial. Tudo por conta de uma história repleta de mistério e intriga que, há 24 anos, colocou Cabo Frio nas manchetes dos principais jornais do país: a notícia de que o superpoderoso traficante colombiano Pablo Escobar teria estado na cidade. Mais precisamente, escondido numa casa bem lá na tal Cambuçá.
Em uma região pacata, no início da estrada que liga Cabo Frio a Búzios, a RJ-102, o Bosque do Peró, que à época ainda nem era murado, de repente entrou no olho do furacão. João Batista de Jesus, 59 anos, administrador do condomínio, se recorda da chegada dos investigadores. “Só tinha policial de elite”, conta. Nos dias seguintes, apareceram os jornalistas. Dezenas. Entre eles, João Batista se lembra bem, Marcelo Rezende, que morreu no mês passado vítima de um câncer de pâncreas. Rezende chegou a gravar na casa onde suspeitou-se que Escobar esteve hospedado. De lá, falou para as câmeras: “É para esta casa que a polícia acredita que veio o megatraficante”, diz João, levando a mão à frente da boca, como se empunhasse um microfone imaginário, tentando imitar a voz cortante do jornalista, num exercício de memória em busca das palavras exatas.
Não era à toa tamanho furor causado pela possibilidade de o narcotraficante ter vindo ao Brasil – Escobar se encontrava foragido desde 22 de julho de 1992, quando fugiu de uma prisão que ele mesmo havia construído, chamada ‘La Catedral’, em acordo com o governo. Tratava-se de um bandido superlativo. Antes dos 40 anos, juntou fortuna calculada em 3 bilhões de dólares, segundo a revista Forbes. Filho de camponeses, escalou rapidamente os vertiginosos degraus do mundo do crime até se tornar o chefão do Cartel de Medellín – no final dos anos 1980, era responsável por 80% da cocaína que circulava pelo mundo. Sua trajetória, recontada na série ‘Narcos’, do Netflix, foi marcada a sangue. Instaurou sua própria lei, conhecida como plata o plomo (dinheiro ou chumbo), que tinha um funcionamento simples: ou as pessoas aceitavam suborno ou morriam. Foi acusado de 240 assassinatos, somente pelo DEA, órgão norte-americano que combate o narcotráfico.
Os depoimentos
Era 16 de agosto de 1992. Naquele dia, um pescador decidiu ir à delegacia de Cabo Frio. Lá, afirmou que, dez dias antes, havia reconhecido Escobar na cidade de Paraty, em companhia de um homem e uma mulher, desembarcando de um helicóptero e entrando num Santana preto, com placa de São Paulo. Disse também que o grupo se dirigiu ao restaurante de um condomínio luxuoso. Estava inaugurado o mistério. O depoimento logo se tornou assunto nos jornais e rodas de conversa e motivo de investigação da polícia. Tempos depois, correu o boato de que Escobar teria até mesmo passado réveillon e carnaval em Angra dos Reis. A polícia, porém, concluiu que tudo não passou de um engano do pescador, que teria confundido o colombiano com um empresário paulista, por conta da semelhança física – revelação feita pelo próprio advogado do empresário, nada menos do que Márcio Thomaz Bastos.
Mas a história estava longe, muito longe, de chegar ao fim.
Foi na madrugada do dia 2 de outubro de 1993 que a Região dos Lagos definitivamente apareceu no mapa das suposições: numa parte das 16 horas de depoimento no II Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, uma testemunha da chacina de Vigário Geral afirmou que Escobar pagou 10 milhões de dólares a policiais para não ser preso no condomínio em Cabo Frio. A denúncia dava conta de que a extorsão havia sido comandada pelo então delegado e diretor da Divisão Geral de Polícia Especializada, Élson Campello, e que o dinheiro teria sido levado para a cidade por Michel Assef – que chegou a ser apontado, no mar de informações que a todo momento pipocavam sobre o caso, como advogado de Pablo Escobar.
Num daqueles dias, o telefone do repórter Maurício Menezes tocava na redação do jornal O Estado de S. Paulo. Era uma fonte da Polícia Federal, que tentava lhe adiantar a notícia de extorsão.
– Logo em seguida, liguei para o Michel Assef. Eu disse: “doutor, aqui é o Maurício Menezes, d’O Estado de S. Paulo. O que a polícia tá passando é que Pablo Escobar teria sido preso e extorquido e que você seria a pessoa escolhida para receber 10 milhões de dólares do tráfico para soltá-lo”. E ele me respondeu dessa forma: “o camarada que te passou essa informação não me conhece. Isso é uma indignidade. Se colocarem 10 milhões de dólares na minha mão para levar a Cabo Frio, vou sumir do mapa. Acha que sou otário?” – recorda Maurício Menezes.
Ao ver seu nome envolto no episódio, Michel Assef teve uma ideia. Convocou uma coletiva de imprensa na sede do seu escritório, que continua até hoje no mesmo local, à Rua México 119, terceiro andar, Centro do Rio de Janeiro. Segundo ele, na ocasião, quando todos os profissionais da imprensa encontravam-se a postos para ouvi-lo, começou a falar:
– Pablo Escobar esteve no Rio, sim. Levei-o para assistir ao Fla-Flu. Depois, fomos jantar no [restaurante] Lamas. No dia seguinte, almoçamos na [confeitaria] Colombo...
– De repente, alguém falou: “Você está de sacanagem...”. E eu respondi: “Eu, não. Vocês é que estão de sacanagem! Se eu tivesse recebido 10 milhões, vocês nunca iam mais me ver. Eu não ia mais dar confiança a vagabundo nenhum” – conta ele, que já foi advogado do bicheiro Castor de Andrade (este, sim, em sua palavras, “um excelente cliente”)e teve ainda extensa atuação no Flamengo (foi presidente do Conselho de Grandes Beneméritos, além de vice-presidente de relações externas, jurídico, futebol e geral).
Entre outras lembranças, Assef rememora que foi advogado de um homem que trabalhava na embaixada colombiana.
– Alguém, de sacanagem, começou a falar que esse colombiano, na verdade, se tratava do Pablo Escobar. Eu até gostaria de ter sido advogado dele mesmo. Teria ganhado uma prata – ironiza.
Ele diz que não processou veículos de comunicação.
– Minha mulher é que ficou preocupada com negócio de sequestro, coisa e tal. Mas nunca que eu iria processar. Olha, com padre e jornal eu não brigo – sentencia.
A carta de Escobar
No curso das investigações, dois policiais, acusados de terem participado da extorsão, foram presos. Agentes do serviço reservado do Estado-Maior da PM constataram que ambos enriqueceram inexplicavelmente naqueles dois últimos anos, comprando imóveis, telefones e casas de veraneio. A pressão da opinião pública aumentava. Em busca de respostas, o então corregedor da Polícia Civil, Álvaro Luiz Pinto e Souza, viajou para a Colômbia em companhia do promotor Guilherme Eugênio de Vasconcelos. Saíram de lá com uma carta de próprio punho do criminoso, assinada e com impressão digital, na qual ele atestava que não esteve no Brasil depois do ano de 1984.
Hoje no cargo de procurador de Justiça, Guilherme Eugênio lembra que a carta veio por intermédio do irmão de Pablo Escobar, Roberto Escobar, que estava preso num presídio de segurança máxima.
– Conversamos com um promotor de justiça que nos atendeu muito bem, mas não abriu muitas informações. Não conseguimos mergulhar no submundo da droga. Era uma coisa muito complexa. E muito perigosa. Se fosse hoje, eu não iria. A Colômbia nem ao menos nos deixou levar nossas armas. Éramos duas pessoas desarmadas, em busca de pistas. Na época, o irmão do Escobar estava preso. Conseguimos entrevistá-lo na penitenciária. Embora estivesse em presídio de segurança máxima, ele tinha uma situação confortável. E disse que poderia conseguir para nós uma carta em que o irmão esclareceria o ocorrido. Pouco tempo depois, a recebemos.
Uminstituto de criminalística colombiano realizou a perícia grafotécnica. Autenticidade aferida, missão cumprida.
– O Escobar já estava na fase de declínio. Tinha contrariado tantos interesses que se tornou um incômodo para o governo e, também, para demais facções que queriam tirá-lo de circulação. A única chance de sobreviver seria ficando em Medellín. No Brasil, ficaria vulnerável, correndo o risco de ser atacado por rivais ou extorquido por criminosos locais. Era totalmente improvável a vinda dele – opina Guilherme Eugênio.
O advogado e professor de direito penal Nilo Batista, que naquele período acumulava a função de secretário de Polícia Civil com a de vice-governador, tem visão semelhante:
– Rapidamente se viu que não tinha fundamento. Foi uma hipótese que foi levantada. Eu não entendia o que Pablo Escobar estaria fazendo aqui no Rio. Nunca acreditei direito nisso. Tinha toda pinta de ser um boato. Era estranho, esquisito. Mandei verificar, e se constatou realmente que não era verdade.
Maurício Menezes aumenta o coro:
– Escobar era o homem mais procurado do mundo. Ele era tão rico que guardava sua fortuna em mansões. Botava no chinelo o Geddel [Vieira Lima, ex-ministro do presidente Michel Temer que teve R$ 51 milhões encontrados num apartamento]. Não tínhamos certeza de nada. Ele poderia ter vindo para o Brasil? Poderia. Mas era dificílimo de se provar. Por isso, sempre escrevi na condicional, falando na possibilidade. Alguns jornais chegaram a afirmar que ele esteve aqui. Às vezes, ao dar uma notícia dessa, você acaba ajudando bandido, que pode ter um esquema de divulgação de notícias falsas. Ele pode querer que você divulgue que está no Brasil, porque, na verdade, sei lá, está no Panamá.
De fato, a carta colocou um ponto final nas investigações. O que não significou, evidentemente, o sepultamento das polêmicas. Pelo contrário. No dia 25 de novembro de 1993, o Jornal do Brasil publicava editorial com duras críticas ao desfecho:
“A carta de Escobar – com assinatura e impressão digital – é uma inversão de valores espetacular. Inaugura-se a era em que os traficantes é que passam atestado de bons antecedentes aos policiais. Com base nesta carta, a corregedoria encerra a investigação e põe uma pá de cal numa das mais graves denúncias provenientes do depoimento do X-9”, dizia o texto sob o título ‘Maus Antecedentes’.
Por sua vez, a então deputada Regina Gordilho (Prona-RJ) pediu ao procurador-geral da República, Aristes Junqueira, que a Polícia Federal assumisse as investigações. Regina, assim como parte dos formadores de opinião, sustentava que a carta não tinha valor legal. De outro lado, o delegado Élson Campello, que encabeçava uma lista de 71 pessoas acusadas de formação de quadrilha pelo Ministério Público, foi a público após longo período de silêncio se dizer injustiçado. A carta, afirmou, era “o início do esclarecimento de uma série de inverdades” e as denúncias da testemunha de Vigário Geral, “injúrias atribuídas a pessoas de bem”.
Pablo Escobar morreu pouco depois, em 2 de dezembro de 1993, numa emboscada em Medellín. Até nisso, porém, há contradições. A polícia colombiana diz que o tiro partiu de um dos oficiais, enquanto que o filho do narcotraficante, Juan Pablo Escobar, sustenta que o pai tirou a própria vida com uma pistola. Mas, afinal, Pablo Escobar esteve em Cabo Frio ou não? Pelo menos no Bosque do Peró, o assunto virou lenda de um condomínio que já recebeu ilustres como a atriz Elke Maravilha – que morreu no ano passado, aos 71 anos – e os jogadores de futebol Romário e Leandro.
– Você é do jornal? Não veio fazer reportagem sobre o Escobar, né? – divertiu-se o porteiro Marcos Heitor Ferreira, ao recepcionar a reportagem, quando ainda nem sabia o motivo da visita.
O administrador João Batista é taxativo:
– Não sei da onde saiu a informação de que ele esteve exatamente aqui. A casa que apontaram, inclusive, tinha morador. É curioso, mas aqui ele não esteve.