Carlos Scliar, o Forrest Gump da cultura brasileira
Acervo de artista gaúcho que morou em Cabo Frio por muitos anos revela muitas histórias
Naquele homem que repousa sentado, imerso nos desenhos, havia mais do que papel e tinta. Carlos Scliar (1920-2001) foi um Forrest Gump da cultura brasileira. O pintor se projetou com os modernistas, se alistou à Segunda Guerra, participou da Bossa Nova e do Tropicalismo e elaborou cartazes para o clássico do cinema ‘Rio Zona Norte’ (1960). O retrato da estátua de Scliar em muito se assemelha com o pôster do filme estrelado por Tom Hanks, mas é a casa que atualmente cumpre o papel do contador de histórias. A Casa-Ateliê Carlos Scliar possui enorme acervo do gaúcho.
Muitos turistas procuram a estátua para tirar fotos, mas não conhecem a história do artista. Talvez porque a casa fique de portas fechadas pela falta de um guarda municipal. O espaço tem objetos mantidos na mesma posição deixada por Scliar até hoje. O centro cultural possui muita informação, com a parede revestida por cartas de personalidades, capas de livros, de discos, fotos e um artigo censurado pelo Governo Vargas sobre o salário dos professores. Uma linha do tempo rabisca o chão e situa os visitantes sobre vida e obra de Scliar.
Estátua do artista, que fica no São Bento, é muito visitada
O geólogo Gilberto Machado, 59, mora no Rio e ficou surpreso ao se deparar com a Casa Scliar.
– Estava passando e, por acaso, encontrei a casa. Nem sabia que ele morava aqui. Mas já conhecia o Scliar mesmo sem visitar Cabo Frio. Ele é famoso mundialmente – afirmou.
Por lá, ateliês de artesanato e pintura, biblioteca e cinema. Os dois últimos estão fechados (a biblioteca será arrumada) e a sala espera o retorno da subvenção do governo para poder passar as sessões novamente. Os filmes em cartaz atraíam muita gente ao museu, segundo um funcionário.
Ao lado da porta, o autorretrato de Clarice Lispector evidencia a amizade dos dois com os escritos: “Eu simplesmente gosto de Scliar. Isso é tão simples. Amigos sinceros e honestos”, disse em uma das visitas ao ateliê. Já a sala de cinema foi batizada em homenagem a Nelson Pereira dos Santos – com a assinatura do cineasta na parede. A porta tem uma foto do diretor com um belo texto sobre Scliar. O computador fica no centro do móvel, com um acervo digital ainda em construção.
– Lá em cima era o ateliê dele, onde ficava maior parte do tempo. Trabalhava 24 horas por dia. Tinha ateliês em dois lugares: aqui e em Ouro Preto – conta a presidente do Instituto Scliar, Regina Lamenza.
O artista foi filho de um judeu ucraniano que fugiu do czarismo. Os primeiros passos da carreira foram os livros de histórias infantis – Scliar precisou desenhar e aí percebeu que a principal vocação não era a literária. Na década de 1940, a pedido do amigo Jorge Amado, morou no Rio de Janeiro e visitou Cabo Frio pela primeira vez. Na mesma época, conheceu outro amigo de longa data: Rubem Braga.
Comunista convicto, Scliar se alistou voluntariamente na Força Expedicionária Brasileira (FEB) para combater o fascismo na 2ª Guerra Mundial. No campo de batalha, desenhou soldados – a obra seria publicada como ‘Cadernos de Guerra’ em 1969. No meio do combate, Scliar recebeu de Rubem Braga a notícia da morte da mãe – o episódio foi narrado pelos dois em cartas disponíveis no acervo digital. Em 1953, Scliar faria a capa do livro de Jorge Amado, ‘Seara Vermelha’. Em 1949, o artista lançou um álbum com as ilustrações para a edição francesa do romance.
– Ele dizia que para não enlouquecer, pintou mais de 700 desenhos de guerra. Recentemente, a Embaixada de Londres pediu que a gente doasse 35 desenhos da guerra, porque o Scliar fez uma exposição para ajudar a Força Aérea Inglesa – revela Regina.
Nos anos 50, Scliar retorna para Porto Alegre e participa de um projeto do Partido Comunista Brasileiro: o Clube de Gravura. O grupo queria transformar a pintura numa arte acessível e retratar trabalhadores do campo.
– O clube partia do princípio: a gravura é a melhor forma de democratizar a arte para o povo. Havia o objetivo de resgatar a cultura popular do povo gaúcho, principalmente dos negros. O Scliar fez edições sobre os peões que trabalhavam nas fazendas gaúchas. Havia uma estética realista. Isso aqui é o povo nu e cru – coloca o historiador Paulo Roberto Araújo, que organizou o arquivo digital da casa.
O pintor ainda teria o momento em que marcaria a carreira. Scliar foi chamado pelo jornalista Nahum Sirotsky para trabalhar na parte gráfica da Revista Senhor. O convite rendeu grande fama ao desenhista, além do convívio com grandes nomes da literatura brasileira, como Clarice Lispector e Guimarães Rosa.
Nos meados da década de 60, Scliar finalmente compra o ateliê em Cabo Frio. O artista ainda rodaria o mundo para estudar e fazer exposições. Carlos Scliar morreu em 2001.
– Uma das razões para morar aqui era a luminosidade. A luz de Cabo Frio era especial para ele. A parte de cima do ateliê era o lugar dele. Normalmente, no fim do dia, me mostrava três quadros pintados e perguntava “Filhotinha, qual você gosta mais?”. Trabalhava o dia inteiro. Era um operário da arte – conta a guia Teresa Sanerson.