Araruama Literária: MV Bill e Carpinejar falam à Folha sobre educação e a realidade dos jovens
Primeiro dia reuniu Daniel Munduruku, Arassari Pataxó, MV Bill e Carpinejar em encontros potentes
A sexta-feira (23 de maio) marcou o início da programação da Feira Literária de Araruama com duas mesas que reuniram grandes nomes da literatura e do pensamento contemporâneo. Na Praça Menino João Hélio, centro da cidade, o público se mostrou numeroso e atento. O clima era de celebração, mas também de escuta e reflexão diante de temas como ancestralidade, racismo, desigualdade social, identidade e educação.
A primeira palestra, às 16h, foi com o escritor Daniel Munduruku e a liderança indígena Arassari Pataxó. O tema era “Identidade e território – povos silenciados pelo colonialismo/eurocentrismo”. Os dois foram pontuais e a conversa fluiu com profundidade e emoção. A cada intervenção, uma salva de palmas.
— Um sistema doentio não deixa vocês saberem disso — disse Arassari Pataxó, ao comentar como o conhecimento e a história indígena foram suprimidos ao longo dos séculos.
Daniel Munduruku ressaltou o papel da ancestralidade e da transmissão de saberes entre gerações:
— Todos seres são importantes. Temos a péssima mania de se achar dono da natureza. Somos parte desse mundo.
Ele lembrou que, na tradição indígena, as crianças se relacionam com os mais velhos como forma de manter viva a memória coletiva.
— A sociedade foi ensinando para a gente que precisávamos ser alguém na vida. E, para essa sociedade, ser alguém na vida significa ter coisas, possuir riquezas, conquistar, colonizar, ter propriedades. E isso fez com que a gente desenvolvesse dentro de nós um certo egoísmo e uma certa arrogância, porque a gente acaba se achando superior mais do que os outros seres que não são humanos — afirmou.
Um dos momentos mais marcantes ocorreu quando Arassari relatou que sua aldeia estava em conflito, com quatro mortes recentes.
— Vocês acham que eu trouxe meus filhos, minha família aqui comigo por quê? Porque eu posso voltar lá e não encontrá-los mais — disse, com os olhos marejados.
— Nós, povos originários, somos 5% da população brasileira. Mas nós somos responsáveis por 80% de todo ecossistema do planeta. Taí a importância desses povos — destacou.
Em seguida, às 18h30, foi a vez de Fabrício Carpinejar e MV Bill dividirem o palco para falar sobre “A educação como processo de emancipação e mobilidade social”. A palestra começou com cerca de 30 minutos de atraso, por conta do mau tempo. Mas a espera não impediu que o público permanecesse atento e participativo — mais uma vez, cada fala foi recebida com entusiasmo.
Carpinejar abriu a roda com um relato pessoal comovente:
— Quando eu tinha 7 anos, eu fui diagnosticado com retardo mental, fui convidado a sair da escola porque não teria condições para aprender a ler e escrever. A minha mãe não me deu um rótulo, ela foi até a direção da escola e pediu dois meses que ela me ensinaria a ler e escrever em casa. E ela tirou licença do seu trabalho. E criou jogos educativos na calçada, em frente de casa. Jogo da amarelinha, quebra-cabeça, jogo da forca, morto vivo. E eu fui brincando. Eu nem sabia que eu estava aprendendo. Em dois meses eu voltei para a escola lendo e escrevendo melhor que os meus colegas. Queremos ensinar a partir de um método coletivo e não levamos em consideração as particularidades de cada um, os medos de cada um, as necessidades de cada um. Há pessoas que são mais lúdicas, há pessoas que são mais lógicas. Esse empurrão que eu recebi da minha mãe foi o empurrão da paciência. Porque ela me ensinou que o diagnóstico não é destino: diagnóstico é um retrato provisório. O destino é você que faz.
MV Bill contou como a escola, muitas vezes hostil, também pode revelar talentos:
— Que todo mundo ria dos meus cadernos, das poesias, das coisas que eu escrevia. Quando a professora Nair viu que eu ficava muito disperso em sala de aula, ela pediu pra ver meu caderno, então pegou meu caderno, pensei que ela ia me dar um esporro, ela foi pra frente da sala e começou a ler todas poesias, todas as coisas que eu escrevia. Chamou minha mãe na escola, minha mãe já com o cinto na mão pensando que era reclamação, mas era pra fazer um elogio.
E defendeu a sofisticação do rap como ferramenta de educação e reflexão:
— Não pode repetir rima nem verso. Tem que pegar um assunto e desdobrar ele às vezes em 4, 5, 6, 7 minutos, sem repetir nenhum verso nem ser repetitivo e ainda ter a preocupação de não fazer rimas baratas.
— E só pode fazer isso quem ler muito, quem tem muito conhecimento. E eu não tinha vocabulário para fazer isso. Então, recorri aos livros. Eu tinha um amigo que era um pouquinho mais velho do que eu, um pouquinho mais inteligente do que eu. E ele já tinha acesso aos livros e falou: ‘Eu ouvi dizer que fala que escreve melhor quem ler mais. Vamos dar uma lida para a gente aprender mais?’. E foram esses livros que me mostraram que eu poderia ser uma exceção dentro de uma regra que não me favorecia.
Depois da palestra, Carpinejar e MV Bill conversaram com a Folha dos Lagos sobre educação, afeto e a realidade dos jovens brasileiros.
Folha: Você costuma dizer que a palavra pode salvar. Como a literatura pode ser uma via de mobilidade para quem nasce fora dos grandes centros culturais?
CARPINEJAR: Eu sou gaúcho. Isso significa que eu preciso trabalhar o dobro pra ser visto, pra ser escutado. E acredito que não valorizamos os sotaques, a regionalidade.
Folha: Em Araruama, há muitas histórias não contadas, silêncios familiares, afetos reprimidos. Como a escola pode ajudar os jovens a escreverem suas próprias narrativas?
CARPINEJAR: Diário. Eu sou adepto de que as escolas pratiquem diários. Todo aluno, assim que alfabetizado, deveria começar um diário. Não para ser mostrado na escola, mas para ser escrito durante o período letivo. Imagina tu ter um diário do teu primeiro ano até o fim do ensino médio. Tu tem a capacidade de acompanhar a tua evolução. De se entender, de se aceitar, de se assumir. Isso seria uma revolução.
Folha: Você acha que o afeto tem espaço na educação formal? Ou ainda vivemos uma pedagogia da rigidez e do medo?
CARPINEJAR: O que é o afeto? O afeto a gente pensa que é ‘ah, o abraço’. Não. O afeto é respeitar o aluno. É respeitar o potencial dele, o quanto que ele pode dar. E não menosprezá-lo. E nunca delimitá-lo. Há alunos que são problemáticos porque têm problemas de convivência. Mas não é do ensino, da pedagogia. É da convivência. Então, o ensino precisa também ensinar a conviver, a trabalhar coletivamente, a pensar como turma. O esporte faz isso muito bem, mas a gente não consegue utilizar isso em atividades do conhecimento.
Folha: Você sempre usou o rap e o audiovisual como formas de educar. Em territórios onde a escola falha, como a arte pode preencher esse vazio?
MV BILL: A arte acaba fazendo esse preenchimento, mas é sempre bom ressaltar que a arte não tem esse papel, essa obrigação, mas cumpre esse papel muito bem. Inclusive eu conheci muitos professores, aqui e fora do país, que lecionaram utilizando a arte de alguma forma. Ainda mais nos dias de hoje, em que a concorrência com o que tem fora da sala de aula é muito grande. Com a arte se consegue fazer isso muito bem.
Folha: Em cidades como Araruama, onde muitos jovens vivem entre o abandono e a esperança, o que você diria que é o primeiro passo para transformar a própria realidade?
MV BILL: Parece um pouco clichê, mas investir em conhecimento, em curso preparatório. Acho que isso é muito importante. Vejo que tá tendo muitas oportunidades de emprego, mas que tem muita gente despreparada. Às vezes porque não tiveram tempo para se preparar ou que não quiseram se preparar porque acharam que era uma coisa menos importante. E aí tem muita gente na favela, nos lugares mais pobres, que não tão mais sonhando em ter uma profissão. Tá sonhando em ser influencer, ficar famoso, ganhar dinheiro muito rápido, mas isso não é pra todo mundo. Então, a educação continua sendo o meio mais eficaz de conseguir ascensão social.
A Araruama Literária segue até segunda-feira (26), com uma programação diversa que inclui, pela primeira vez, atividades voltadas à educação infantil. Ao longo dos próximos dias, o evento também contará com novas palestras de nomes de peso da cultura nacional.