Show no aniversário de Cabo Frio

Netos em casa: Araceli Matus e Junior Carriço reverenciam Mercedes Sosa e Victorino Carriço

Parceria liga Buenos Aires a Cabo Frio em apresentação na Praia do Forte, neste domingo (13), a partir das 19

11 NOV 2022 • POR Rodrigo Cabral • 10h30
Álbum lançado por Araceli Matus em 2021 conta com duas composições em parceria com Junior Carriço - Divulgação

Casa, mais do que espaço físico, é abri­go de memórias, sentimentos e per­cepções, que dão à vida algum sentido. Uma casa de criação, de encontros e de multiculturalidade permitiu a Araceli Matus ser o que é. Feito tatuagem. Eternizada na pele, a capa do disco ‘Geraes’, de Milton Nasci­mento, simboliza seu amor pela música brasileira, que surgiu, em grande parte, a partir do convívio com a avó, Mercedes Sosa (1935-2009) – uma das mais aclamadas vozes da história da Argentina. Casa, para Junior Carriço, significa algo seme­lhante. É, em suas palavras, “lugar povoado de versos e melodias”. É desta forma que ele relem­bra, no seu livro de poesia “Recovecos” (2017, 96 págs.), a infância ao lado do avô, Victorino Carriço (1912-2003) – o poeta que traduziu Cabo Frio, Arraial e São Pedro em poesia.

O destino, por sorte, tratou de cruzar seus ca­minhos. Juntos, os dois sobem ao palco montado na Praia do Forte, em Cabo Frio, no dia do ani­versário de 407 anos da cidade, neste domingo, 13 de novembro, a partir das 19h. É uma parceria que, ao marcar reverência a Mercedes Sosa e a Victorino Carriço, abre corredor entre Cabo Frio e Buenos Aires através da música. Foi numa de suas corriqueiras visitas ao Brasil que Araceli conheceu Junior, há três anos, por intermédio de um amigo. Da bagagem, a cantora portenha tirou uma melodia. Junior, como bom anfitrião, rascunhou a letra: “Eu que pisei no céu com a ponta do pé / Só sei que aceitei do mar a vez de beijar meu calcanhar (...)”. Surgiu, assim, a canção “Primero de Enero”. Depois, no meio da pandemia, compuseram “Confinado”. Ambas fazem parte de “Matuseándose”, disco que Areceli lançou em 2021.

 

 

– Na minha casa se escutava muita música em português, entre muitas outras coisas. Meu irmão viveu muitos anos no Brasil. Sua filha é carioca. Tenho muitos amigos no Brasil, não apenas no Rio – conta, durante entrevista realizada por vi­deochamada num fim de tarde de outubro.

Em 1976, Milton Nascimento lançava “Gera­es”, com a participação de Mercedes Sosa na faixa “Volver a los 17”. Foi assim que parte do público brasileiro passou a apurar os ouvidos para aquela que é considerada como a maior intérprete do folclore argentino. No mesmo ano, uma junta mi­litar derrubou Isabelita Perón da presidência. Em 1979, perseguida pela ditadura, Mercedes Sosa deixou o país, exilando-se na Europa. Por sua defesa dos oprimidos e marginaliza­dos, recebeu a alcunha de “a voz da maioria silenciosa”. – Minha vó, quando não podia traba­lhar na Argentina, no começo dos anos 1980, foi cantar no Brasil. Para ela, era muito importante o Brasil. Quando ela voltou para a Argentina, em 1982, era comum recebermos músicos brasilei­ros em casa. Kleiton & Kledir, Mil­ton Nascimento... Milton sempre, sempre – diz Araceli, pausada­mente, com a voz grave, numa reverência solene e intimista ao compositor e cantor bra­sileiro, que completou 80 anos em 2022.

E continua:

– Depois, no ano de 1985, minha vó produziu aqui na Argentina um es­petáculo chamado “Sem Fronteiras”, com mulheres da América Latina. E, do Brasil, trouxe Beth Carva­lho. Então, conheci a Beth. E, também, João Gilberto, Caetano, Chico, Gal Costa. Assim eu cresci. Pianista desde tenra idade – começou a estu­dar o instrumento com apenas sete anos – e musi­coterapeuta, Araceli quase não encontra palavras para explicar o porquê de lançar, somente agora, um trabalho solo – ela comemora 46 anos dois dias antes da apresentação em Cabo Frio.

– Sempre toquei em grupos... Na vida, às vezes, é assim. Não tenho filhos, não me casei. Sabe um peixe que vai sempre contra o cardume? Eu – compara a artista.

Além da parceria com Junior, Araceli dispôs de um repertório com a assi­natura de nomes como Eduardo Ma­teo, Caetano Veloso, Rubén Blades, Hugo Fattoruso, Lo Borges e Vittor Ramil (este, irmão mais novo de Kleiton & Kledir). A escolha se deu por critério sim­ples: procurou can­ções que possibili­tassem encaixe preciso para sua voz. Isto se faz notar, so­bretudo, pela suavidade e delicadeza de arranjos que ornamentam uma cama macia para a cantora. É, como anotou o “Clarín”, “um “fra­seio de Bossa Nova com ausência de falsete, uma espécie de sussurro calmo que repousa sobre a suave melodia de acordes de piano”.

– Queria que o disco soasse como os artistas que gostamos. Há muito de Milton e Djavan. Cres­cemos com a música deles. E seguimos escutando. Fora dos palcos, Araceli preside a Fundação Mercedes Sosa, na missão de levar adiante o le­gado da avó. Tarefa tão importante quanto árdua.

– É muito difícil. Sofro. Nem sei como se diz em português... Mas, uma vez que consiga atingir dois ou três objetivos, bom, espero que outros tomem a presidência da fundação, porque eu não posso mais. Nesse momento, na Argentina, há ao redor de 15 escolas de jardim de infância que se chamam Mercedes Sosa. E por iniciativa de cada comunidade. Colaboramos e acompanha­mos como podemos. As crianças e os adolescentes conhecem a música e a história de Mercedes. E, a partir da história, têm uma realidade históri­ca de nosso país, do nosso continente. É muito forte. Isso tem a ver com a nossa identidade. Aí é onde desfruto, onde vejo que a fundação está cumprindo o seu papel, que é difundir o legado de Mercedes e da cultura latino-americana, porque era o que minha vó fazia também. Ela sempre estava rodeada de pintores, escultores, bailarinos, escritores. Eu gosto, mas sofro muito, muito.

Um lugar pleno de arte e felicidade

De repente, a multidão se recolheu. E a exuberância da cidade se fez si­lenciosa sob o luar que encantou tu­ristas, gente da terra e poetas como Carriço. Em Arraial, durante a pande­mia, dois amigos se refugiaram num estúdio caseiro, fazendo da própria arte uma proteção da alma contra a amargura, o distanciamento e a so­lidão. “Linha divisória”, “A bossa do Arraial e o mar”, “Samba do aparta­mento”, “Num beijo” e “Pitangueira” são as canções de Junior Carriço que receberam novos timbres e ritmos sob a produção de João Pires. Daí nasceu o EP “Carriço no Bunker do João”, lançado em 2022, mesmo ano em que são comemorados os 110 anos de Victorino Carriço, também conhe­cido como Santinho. Enquanto fazia o lançamento do projeto, fruto do talen­to que vem de sangue, Junior esteve envolvido em dezenas de homenagens prestadas ao autor dos hinos de Cabo Frio e de Arraial, entre tantos outros.

 

– O poeta que habitou esta casa, que morou aqui, meu avô, foi meu pai também. Esta casa: plena de arte, feli­cidade, afeto, sonhos, ideias, de uma visão de mundo cosmopolita aberta, feliz – declarou Junior, diante da Casa da Poesia, na Praia dos Anjos, para documentário gravado pela Pre­feitura de Arraial do Cabo.

E o que vem pela frente? Do futuro ninguém sabe, mas, pelo menos, que se faça a vontade de Mercedes Sosa e Victorino Carriço: música não pode faltar. Na Praia do Forte, seus netos estarão em casa, mais uma vez – e, certamente, sairão com inspiração para encurtar fronteiras e produzir outras canções. – A todo tempo, Junior me fala: “Existem músicas, existem músicas!”. Já vão vir ou­tras. Estou segura dis­so – avisa Araceli.

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