NADA FEITO

Recusa de Bonifácio em ceder área para museu arqueológico em Cabo Frio frustra historiadores

Cessão de local ao lado do Shopping Park Lagos foi sugerido como medida compensatória

11 SET 2022 • POR Cristiane Zotich • 11h50
Artefatos arqueológicos no Sítio Sambaqui da Beirada, em Saquarema - Divulgação

Embora exiba em placas turísticas o título de sétima cidade mais antiga do Brasil, Cabo Frio vem deixando de lado a preservação e valorização da sua pré-história. Pela segunda vez um governo municipal disse “não” à criação de sítios arqueológicos com materiais de sambaquis. O prefeito José Bonifácio, há poucos dias, recusou-se a ceder uma área pública ao lado do shopping Park Lagos para criação do Parque Ambiental e Arqueológico Lina Kneip. Antes dele, quem também disse “não” para um projeto semelhante, mas na Boca da Barra, foi o ex-prefeito Alair Corrêa. 

Os sambaquis são registros da vida humana na pré-história do litoral brasileiro. Alguns foram construídos pelos povos que habitavam a região há cerca de 6 mil anos.

Historiador e autor de vários livros sobre a história marinha da Região dos Lagos, Elísio Gomes Filho diz que tinha o aval do prefeito para sugerir a criação do Parque numa área pública como medida compensatória pela ampliação do estacionamento do shopping, mas foi pego de surpresa quando o chefe do Executivo cabo-friense anunciou, durante um evento, que não faria a liberação do espaço.

– Acreditei que ele estava interessado na criação do Parque. Jamais me entregaria num projeto dessa envergadura sem o aval do chefe do Executivo. Mas foi decepcionante quando ele disse ao contrário – desabafou Elísio.

As medidas compensatórias têm por objetivo reparar os impactos ambientais causados pelos empreendimentos e são exigidas durante o processo de licenciamento ambiental. A medida compensatória que a Prefeitura de Cabo Frio propôs ao Park Lagos ao autorizar a criação de mais 370 vagas de estacionamento no shopping foi a recuperação do chamado Bolsão da Juju, na Praia do Forte, e o plantio de mudas nativas em alguns pontos da cidade.

No entanto, em audiência pública realizada em agosto, o promotor Leandro Mitidieri, do Ministério Público Federal (MPF), disse não ver sentido nessa compensação, já que a área do Bolsão da Juju faz parte de um Termo de Ajuste de Conduta entre o Ministério Público e a Prefeitura. Por isso, aceitou a sugestão de Elísio para substituir essa medida pela criação de um parque arqueológico numa área pública abandonada ao lado do shopping.

Pela proposta, a Prefeitura cederia o espaço para o shopping, que faria a construção nos moldes do Sítio Sambaqui da Beirada, em Saquarema, e caberia ao governo municipal somente a manutenção e segurança do espaço.

– O prefeito alega que não tem recurso. Estou triste com tamanha indiferença. Infelizmente o projeto ficará em estado de latência até que outro prefeito assuma – disse Elísio, que vê na cultura um dos motores do crescimento do turismo:

– Com sua exposição permanente, e nichos arqueológicos abertos e expostos no solo, em meio à vegetação nativa, o parque ganharia muita visibilidade, tornando-se referência entre os pontos turísticos da cidade.

A pesquisadora e memorialista Meri Damaceno, que já foi secretária de Cultura em Cabo Frio, disse concordar que a criação de um espaço arqueológico na cidade é mais importante do que a manutenção do chamado Bolsão da Juju.

– Esse sempre foi um sonho da gente, ter um museu arqueológico em Cabo Frio. Infelizmente, muitas das nossas peças foram queimadas durante aquele incêndio que teve no Museu Nacional do Rio de Janeiro. A ideia é excelente porque Cabo Frio é rica em material, mas falta vontade política. Lembro que no segundo governo de Alair (Corrêa) a gente fez um projeto lindo com a Lina Kneip, para a Boca da Barra, no Morro do Índio, para fazer um sítio arqueológico ali, no mesmo nível do que Saquarema, mas Alair também não quis. Essa área do lado do shopping realmente tem vários resquícios de sambaquis, de povos pré-históricos, coisas que nem foram abertas ainda – lembrou.

A Folha entrou em contato com a Prefeitura de Cabo Frio para saber o motivo da negativa para criação do Parque Ambiental. Em nota, o governo municipal disse que está consolidando, em Tamoios, o Parque Municipal do Mico-Leão-Dourado, e, para isso, desapropriou as instalações da Associação dos Antigos Funcionários do Banerj-ABANERJ.

“Ainda falta muita coisa a ser feita, como o cercamento de toda área, instalação da Polícia Ambiental, câmeras de segurança, replantio das áreas degradadas e a implantação das salas de recuperação de animais silvestres”.

Sobre os planos para a área abandonada ao lado do shopping, a Prefeitura explicou que não existe projeto para o espaço.

SAMBAQUI DA BEIRADA: EXEMPLO QUE VEM DANDO CERTO

Citado como referência para a criação do Parque Ambiental e Arqueológico de Cabo Frio, o Centro de Socialização do Sítio Sambaqui da Beirada, em Saquarema, foi idealizado na década de 1990 pela arqueóloga e professora Lina Kneip. Ele se sustenta no uso parcial do Sítio Arqueológico como meio para socializar as informações científicas decorrentes do processo de escavação e pesquisa.

Embora inaugurado dia 31 de maio de 1997, como parte do Projeto de Preservação de Sítios Arqueológicos de Lina Maria Kneip, o andamento do plano foi impactado pela trágica morte da professora, em janeiro de 2002, mas está sendo retomado em parceria com o Museu Nacional, fazendo a integração científica dos sítios da Beirada, da Pontinha, de Jaconé e de Manitiba.

"Atualmente, o Sambaqui da Beirada funciona com três vertentes de visitação pública bem distintas. A primeira voltada aos estudantes do ensino médio e fundamental, atendendo uma demanda por educação básica, estabelecendo os primeiros contatos com a pré-história dos sambaquis e noções sobre o que são, o que é uma escavação arqueológica, além da importância da preservação. A segunda se dedica aos turistas e moradores da cidade, com linguagem voltada ao público adulto. A terceira é voltada aos pesquisadores, com uma troca mais profunda do conteúdo extraído das escavações já realizadas", explicou Prefeitura de Saquarema por meio de nota enviada à Folha.

A gestão do Sítio Sambaqui da Beirada é de responsabilidade da Secretaria Municipal de Cultura. Já a manutenção é compartilhada entre diferentes secretarias.

Ainda segundo a nota, o ponto alto do projeto é a preservação da Cultura, tanto do município, quanto do país e do mundo:

“A pesquisa dos sambaquis detém parte muito relevante à ciência para elucidar como se deu a ocupação das Américas. Faz parte de um quebra-cabeça que busca compatibilizar a Teoria do Clóvis à descoberta do crânio de Luzia, uma vez que esse crânio, encontrado em área central do país, é mais antigo que qualquer ocupação sambaquiana encontrada no litoral. Portanto, o Sambaqui da Beirada é um importante campo de pesquisa para esclarecer os fluxos e ciclos migratórios que alcançaram nosso país na pré-história, servindo, a partir daí, de relevante ponto turístico àqueles que buscam ciência e cultura".